As roubalheiras (ou o rapto das tabuletas)

Um dos números menos consensuais do programa das Festas Nicolinas é o das Roubalheiras, que consiste no furto de tabuletas de escritórios e estabelecimentos comerciais, de vasos de flores, de gaiolas com pássaros e de outros objectos que se encontrem à mão de semear. Os objectos retirados pelos estudantes dos lugares respectivos são levados para o Toural, onde ficam em exposição até que os seus proprietários os vão recolher. De todos os números que se fixaram no programa das festas nicolinas, é um dos mais recentes. Ao longo do século XX, foi também o mais intermitente, por força de reprovação pública, de proibições e de auto-censura dos estudantes.

Este acto acontecia na mesma noite das posses (4 de Dezembro), a seguir ao magusto. Realizou-se pela primeira vez em 1895, aquando da restauração das Nicolinas. Nesse ano, o jornal Religião e Pátria noticia umas inofensivas brincadeiras de rapto de tabuletas, vasos, mesas, etc. que na manhã de 5 se viam fazendo bric-a-brac em volta do pinheiro. Nos seus primórdios, esta tradição era conhecida pelo título sugestivo de rapto das tabuletas, por serem os letreiros que se encontravam às portas das lojas, dos serviços e dos profissionais liberais as principais vítimas dos furtos. Mas também não faltavam os vasos e os bichos de capoeira (e, até, as próprias capaoeiras). A designação hoje corrente, roubalheiras, é quase tão antiga como aquela, embora menos generalizada nos primeiros anos em que se realizou.

No periódico A Memória, de 9 de Dezembro de 1900, descrevia-se a visita dos estudantes, “na companhia de D. Prudência e D. Critério”, com o propósito de deitarem ao que lhes aparecesse “pelas ruas mal parado”:

Na terça-feira à noite, foram colhidas as posses no meio das mais entusiásticas aclamações, e realizou-se o grandioso magusto próximo ao pinheiro, o qual foi abundantemente ateado pelo espiritismo, dando-nos uma noite cheia de cenas curiosas, sendo a mais característica a grande roubalheira dos vasos de flores, tabuletas, e todos os mais objectos que encontravam mal guardados e que na sua passagem, semelhante a um formidável furacão, levavam sem piedade nem distracções para adornar o seu galante pinheiro, onde Minerva, lá do alto, os fitava, envolvendo os seus filhos num olhar de gratidão como recompensa das fadigas que passavam ao prestarem este culto saudoso, ao S. Nicolau.

As roubalheiras resultam da adaptação a uma festividade urbana de uma antiga tradição do mundo rural minhoto, levada à prática por altura das festas dos santos populares, em especial nos festejos da véspera e do dia de S. Pedro, também conhecido em terras próximas da cidade de Guimarães como o dia dos atrancamentos. Por essas aldeias afora, era costume os caminhos aparecerem, na manhã do dia 29 de Junho, atrancados com alfaias agrícolas, vasos, utensílios e animais domésticos, desviados por bandos de rapazes dos seus lugares habituais.

Havia quem não apreciasse esta brincadeira. No jornal Independente, de 7 de Dezembro de 1902, defende-se que os estudantes não deviam, com o roubo das tabuletas, desrespeitar a liberdade alheia, quando com tão severas penas pretendem conservar a própria liberdade. Não faltaram, ao longo dos tempos, suspensões e proibições desta prática. Falando das festas e do seu programa, escrevia-se na edição de 10 de Dezembro de 1909 do jornal Regenerador:

Nós discordamos apenas das roubalheiras. Isto não está nas tradições dos festejos nicolinos e, ainda que estivesse, era um número que se devia banir, porque ofende muitas vezes e raro tem graça (...)

As roubalheiras sempre foram objecto de censura social. O próprio Jerónimo Sampaio, grande entusiasta das festas e responsável pelo seu ressurgimento em 1895, num texto que publicou em 11 de Dezembro de 1923, no O Comércio de Guimarães, admitia que não merecem aplausos a gente de senso e boa razão, defendendo a sua supressão do programa das festas. As críticas a esta brincadeira, que se pretendia inocente e inofensiva, decorriam de se perceber que a tolerância para com os furtos parodiais dos estudantes poderia ser aproveitada para acobertar as actividades dos amigos do alheio profissionais.

Ao longo dos anos, as roubalheiras, ora se faziam, ora eram suspensas. Foram abolidas em 1905, regressaram em 1909, voltaram a ser eliminadas em 1912. Em 1919 já figuraram novamente no programa. Desapareceram na segunda metade da década de 1920, para ressurgirem três décadas depois. Ainda constam do programa oficial as festas do ano de 1972, onde se argumentava que “todo o larápio que se preze não se fica somente pelas Posses, pois o que é dado de mão beijada não tem o real valor do que se alcança à custa de trabalho, riscos e intempéries”. As roubalheiras foram suprimidas em 1973.

Em 1994, depois de mais de duas décadas anos de suspensão, as Roubalheiras voltaram a integrar o programa das Festas Nicolinas, com algumas precauções que visavam evitar que os verdadeiros larápios se juntassem à festa, à imagem do que algumas vezes acontecera no passado, dando argumentos à censura social que justificou a sua supressão. Desde então, as roubalheiras nicolinas deixaram de acontecer em dia certo, não constando a sua data no programa que é tornado público, da qual se guarda segredo até depois de terem acontecido.