As Posses

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As Posses são uma manifestação festiva e jovial em que os estudantes recolhem as oferendas que irão partilhar no magusto se lhe seguirá. Saem à rua na noite de 4 de Dezembro, fazendo-se anunciar pelo estralejar de foguetes. Abre-o uma charanga, que executa o Hino Escolástico, ao som do qual os estudantes ora marcham ordenada e compassadamente, alinhados com as mãos sobre os ombros uns dos outros, ora correm desalmadamente, de mãos dadas, por entre a multidão que os acompanha. O caminho que percorrem leva-os às casas onde lhes prometeram posses, a reclamá-las, num grito em uníssono: “ Venha a Posse! Venha a posse!”. Em tempos em que a iluminação das ruas era precária, faziam-se acompanhar de archotes. Sendo certo que a posse principal acontecia no dia de S. Nicolau, 6 de Dezembro, quando os estudantes iam receber a renda de Urgezes, este número já tinha data fixa no programa das festas em meados do século XIX: tal como ainda hoje, acontecia na noite de 4 de Dezembro, seguindo-se-lhe o magusto.

Tem-se dito que as festas Nicolinas terão raízes na renda deixada aos meninos do coro da Colegiada de Guimarães por certo cónego da Colegiada de Guimarães, cujo nome se desconhece, em data que ninguém precisa. Essa renda, que era composta por “duzentas maçãs, meia rasa de tremoços curtidos, meia rasa de nozes, dois alqueires de castanhas assadas, duas dúzias de palha de grandes molhos e dois almudes de vinho bom”, seria retirada dos dízimos de Urgezes, de que a Colegiada de Guimarães de Guimarães era proprietária e trazia arrendada. O cumprimento desta costumeira era uma das obrigações contratuais do rendeiro da dizimária de Urgezes. No dia de S. Nicolau, três coreiros, montados a cavalo, iam a Urgezes receber a renda. O mais velho ia paramentado de bispo, com batina, murça e meia preta. Os outros dois iam vestidos como cardeais, com batina, murça e meia vermelha. Eram acompanhados por grande número de estudantes. Quando regressavam à vila, iam oferecer as castanhas assadas aos cónegos, às freiras e a outra gente grada da terra. Esta renda foi extinta após a abolição dos dízimos em Portugal, determinada pelo decreto de Mouzinho da Silveira de 30 de Julho de 1832, que só teve eficácia a partir de 1834, com a assinatura da Convenção de Évora Monte, que consagrou a vitória definitiva dos liberais.

Mas havia outras posses, de diferentes naturezas, que, desde tempos remotos, eram reclamadas pelos estudantes. A mais carismática era dada pelo Cucúsio, alcunha de um célebre sapateiro da Rua Nova que, aos gritos dos estudantes que lhe reclamavam a posse, se chegava à janela e lhes mostrava o rabo, iluminado por velas que ardiam em dois castiçais. A posse do Cucúsio foi magistralmente descrita por Raul Brandão, em “A Farsa”. Havia também a posse da Chasca, em que os estudantes tomavam um mata-bicho de aguardente e figos secos, ou a posse das uvas, em que os estudantes tinham que trepar uma videira que subia por uma casa da rua de S. Dâmaso, para colherem os cachos que ali se deixavam ficar para eles. E nunca falhava a posse do mato, oferecido pelos oleiros da Cruz de Pedra, com que os estudantes acendiam a fogueira do magusto.

No início do século XX, segundo a descrição do jornal Independente, de 1 de Janeiro de 1904, eram assim as posses:

O dia 4 de Dezembro é o chamado dia das posses. Os estudantes, à noite, à luz de archotes e acompanhados por uma filarmónica vão primeiro aos oleiros da Cruz da Pedra que lhe fornecem cada um uma panada de mato e lha conduzem ao local onde se acha levantada a bandeira. Depois sucessivamente percorrem várias ruas sendo-lhes lançadas das janelas as posses que é de uso darem-se. Esta parte das festas está hoje muito decaída do seu antigo esplendor. O mato fornecido pelos oleiros destina-se a um magusto que se faz terminadas as posses.

Por sua vez, O Comércio de Guimarães, na sua edição de 27 de Novembro de 1906, descrevia as posses deste modo:

No dia 5 de Dezembro, pela uma da madrugada, saía uma música, indo na frente os estudantes, que iam às posses, isto é, a certas casas, em que os recebiam dando-lhes umas uvas (rua de S. Dâmaso), outras figos e aguardente (casa do professor Venâncio e António Pereira da Silva) e outras doces e vinho tinto.

Muitas dessas pessoas que obsequiavam os estudantes já faleceram.

Na Cruz de Pedra, os oleiros davam o mato para o magusto que se fazia no largo do Toural, distribuindo-se as castanhas e o vinho da Comissão pelos músicos e homens que traziam o mato, sendo defeso aos estudantes partilhar deste magusto, pois, como diziam os Padres Abreu e Vinhós, quando algum lhe aparecia, o magusto desta noite não era dos estudantes propriamente dito. O destes era em Santo Estêvão de Urgezes, na manhã do dia 6.

Nas suas memórias, o Coronel António de Quadros Flores (Guimarães na última quadra do romantismo, 1898-1918, Tipografia Ideal, 1967, cap. XVII, pág. 54), lembraria que as posses e o magusto terminavam no alpendre da igreja de S. Pedro, dentro das grades, na distribuição das castanhas e da vinhaça à garotada, oleiros e música.

No passado, havia também posses particulares, as que eram dadas de portas adentro. No virar do século XIX para o século XX, a mais carismática era a Posse do Padre Monteiro, cuja edição de 1904 foi descrita por João de Meira no jornal Independente. Percebe-se que parodiava alguns dos formalismos de uma qualquer assembleia, com presidente e dois secretários. Lida a acta da reunião do ano anterior, “passou-se à ordem da noite que consistiu em fazer passar ao estômago maçãs, uvas, nozes, pinhões, castanhas, figos de ceira, doce sortido, pastéis e vinho verde, de Lamego, de Murça, cognac e aguardente de bagaço”. Seguiram-se brindes e discursos, a que seguiu a dança do Rei David, “magistralmente executada”. Por fim, cantou-se o Hino Escolástico, que “seis vezes foi bisado e seis vezes foi extraordinariamente aplaudido”. No final da reunião, os convivas dirigiram-se à janela para saudarem os estudantes, que ali se dirigiram para renderam homenagem aos “velhos entusiastas” das festas a S. Nicolau.

Em 1881, o jornal Religião e Pátria classificava as posses como uma das mais entusiásticas e especiais brincadeiras destas festas escolásticas. Assim continua a ser nos dias que correm.

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Havia um outro género de posse, a que hoje se costuma chamar moina (sinónimo de pândega, de onde deriva o vocábulo moinante, que designa alguém que é malandro ou festeiro). Eram visitas que os estudantes faziam a casas ilustres do concelho, onde lhes serviam lanches, por regra abundantes e bem regados. Algumas dessas casas ficavam a vários quilómetros de distância da cidade, que os estudantes venciam a zurzir nas peles das caixas e dos bombos, regidos por um colega que ia indicando a cadência dos toques com os movimentos verticais de uma moca, de uma bengala ou de uma haste de couve. Além da recompensa do lanche, estas romagens, que aconteciam ao longo do mês de Novembro, tinham também o propósito de adestrar os jovens estudantes nas subtilezas dos gestos que envolvem a arte de rufar.