O Pinheiro
Anúncio das Festas


É o primeiro acto do programa das festas Nicolinas, acontecendo, desde que há memória, no dia 29 de Novembro. O Pinheiro (ou, mais propriamente, aEntrada do Pinheiro) é um cortejo que traz até à cidade de Guimarães o mastro que se erguerá para anunciar que os estudantes estarão em festa. O seu tronco, que deverá ser o maior que for possível encontrar, é doado aos estudantes por uma família de ricos proprietários rurais, sendo transportado em carros iluminados por lanternas de papel, puxados por juntas de bois. O cortejo é aberto pelo carro de Minerva, com um figurante mascarado, a arremedar a deusa romana da ciência. Atrás do mastro, seguem os estudantes, velhos e novos, executando o toque do Pinheiro, em caixas e bombos, quase sempre deitados na horizontal e partilhados por vários tocadores que, com uma mão, lhe seguram as alças e, com a outra, tocam alternadamente um segmento da sequência das batidas. A fechar o cortejo, segue uma banda filarmónica, executando o Hino Escolástico. No seu percurso, o pinheiro é iluminado por archotes (luminárias) e fogos de bengala. O cortejo termina em estrondosa euforia numa praça de Guimarães, quando o pinheiro retoma a sua posição vertical, com a base do tronco enterrada numa cova previamente preparada (de onde lhe vem a designação, errada e tantas vezes repetida, de enterro do pinheiro). É o número mais concorrido e mais emotivo das festas, em participam diferentes gerações de estudantes de Guimarães.
Ao longo das últimas décadas, o Pinheiro assumiu, uma tal grandiosidade que faz com que muitos o confundam com as próprias Festas Nicolinas, no seu todo. Este é um número que, pela sua espectacularidade, se tem distanciado do seu significado original, em que não era mais do que um anúncio de que os estudantes de Guimarães estariam em festa, replicando o velho costume, usual nas festas tradicionais do nosso mundo rural, de erguer, à entrada da aldeia, um mastro para a içar bandeira que se manterá desfraldada enquanto a festa durar. Costume que, em terras de Guimarães, não era exclusiva do meio rural. Outras festas urbanas, como o S. João, se faziam anunciar na cidade de Guimarães com um pinheiro erguido ao alto.
O Pinheiro levantava-se para nele ser içada a bandeira escolástica, um painel de madeira com uma representação de Minerva, a deusa romanw da sabedoria e da guerra (e, curiosamente, não S. Nicolau, o patrono da festa, o que acentua o seu carácter profano, com uma dimensão religiosa se resume a pouco mais do que o padroeiro que invoca). Com o transcorrer dos anos, a bandeira foi perdendo importância, acabando mesmo por se lhe perder o rasto em meados da segunda década do século XX. Ganhava protagonismo o pinheiro maior, o mastro mais gigante / que ao longe e ao largo canta a festa do estudante.
Até hoje, não se sabe quando é que as festas escolásticas de Guimarães começaram a fazer-se anunciar pelo levantamento de um mastro. A mais antiga menção à sua existência data de 1822. No dia 28 de Novembro daquele ano, foi publicada uma ordem do intendente-geral da polícia que proibia o uso de máscaras no dia de S. Nicolau. Os estudantes recorreram para o rei da proibição, por via de uma representação (petição) que seria acolhida em 12 de Dezembro, através de uma portaria régia que levantou a interdição. A notícia desta decisão foi celebrada em Guimarães no dia 18, tendo os estudantes erguido a sua bandeira no Toural, com acompanhamento de foguetes e repiques de sinos. Naquela noite, a vila iluminou-se, como costumava acontecer nos dias festivos. Recitaram-se versos de regozijo e, à noite, organizou-se uma encamisada (folia de mascarados) de estudantes que, dando vivas a D. João VI, percorreu as ruas da vila com grande acompanhamento de povo.
A primeira menção documental ao uso de um pinheiro para servir de mastro da bandeira dos estudantes de Guimarães aparece num registo de 1842 do diário do cónego Pereira Lopes, de que conhecemos as transcrições anotadas por João Lopes de Faria nas suas Efemérides Vimaranenses. Naquele ano, o levantamento do mastro resultou numa tragédia. “Um pinheiro muito grande”, que estava a ser erguido “conforme o costume”, tombou, tirando a vida a um aprendiz de alfaiate da rua de Trás-o-Muro (actual Alameda de S. Dâmaso).
A entrada do pinheiro Nicolino em Guimarães é, desde sempre, uma manifestação tão ruidosa que ninguém lhe poderia ficar indiferente. Desde a origem, fazia-se acompanhar por um concerto de três músicas: os tambores, a banda filarmónica e a chiadeira dos carros, que provocava arrepios. A dimensão do cortejo tinha duas medidas, o tamanho do pinheiro, que se contava aos palmos (o de 1863 atingiu 96 palmos, o de 1881, “cento e tantos” e o de 1899, 115) ou aos metros (o de 1895 media “uma porção de metros”, o de 1904 atingia 25 metros, enquanto que o de 1911 alcançava 22 metros), ou o número de juntas de bois que o acompanhavam. Colhendo informações nos jornais, sabemos que em 1881 “o pinheiro ou mastro veio da freguesia de Antemil, pela estrada de Braga, puxado a 7 juntas de bois, precedido de uma coorte de tambores, ladeado de inúmeros archotes, e acompanhado por uma banda de música, tocando o Hino Escolástico”. Em 1883, o número de juntas subiu para doze. Em 1895, no ressurgimento das festas, já eram 26. Em 1900, o pinheiro foi puxado por “48 juntas de bois, nédios e bem armados”. Em 1904, foram “seiscentas, perdão, sessenta e uma juntas de bois tirando os carros em que vinha o pinheiro!”. Em 1906 foram 70 juntas, número que seria batido em 1911, quando 79 (ou, talvez, 80, porque as fontes divergem) juntas de bois se incorporaram no cortejo do pinheiro. Em 1916, as festas davam sinais de declínio:
“O “pinheiro”, mastro anunciador das festas, veio este ano (o nunca visto!) puxado apenas por uma junta... de vacas, que já não viam feno há mais de três quinze dias! Pobres bichos... Infelizes animais!...”
Em 1918, chegou a anunciar-se o fim das festas: “Morreu o S. Nicolau!”. Não houve entrada do pinheiro. No entanto, em 1919, as Nicolinas ressurgiram com vigor, sendo o pinheiro tirado por “numerosas juntas de bois”. Em 1925, seriam 53. O pinheiro de 1927 deve ter ficado na memória: a ele compareceram 71 possantes juntas de bois. Na década de 1960, a majestade do Pinheiro ainda se media pela quantidade de bois que escoltavam o mastro: em 1965, foram “muitas e possantes juntas de bois” que carregaram o mastro nicolino.
Daí para a frente, a grandeza do cortejo do Pinheiro passou a avaliar-se pela quantidade de gente que, a partir da década de 1970, com a massificação do ensino, aumentou exponencialmente. E é aí que encontrámos uma das originalidades do cortejo do Pinheiro das Festas Nicolinas: de todos os cortejos que tradicionalmente acontecem em festividades populares, este será um dos raros onde é mais a gente que vai dentro dele do que a que fica nos passeios a assistir à sua passagem.
Com uma tal dimensão, é fácil de perceber que o cortejo fosse fértil em incidentes, embora só haja notícia de duas fatalidade ocasionada pela sua queda, a do ano de 1842, já referida, e a de 1910, em que o pinheiro voltou a cair, provocando a morte a um rapaz de 12 anos.
A maior parte das vezes a única vítima do cortejo era o próprio pinheiro que, na dificuldade de percorrer as ruas estreitas de Guimarães, ficava com a coroa partida, problema que tinha que se remendava pregando-a ao tronco antes da erecção. A curva mais problemática era a da rua de S. Dâmaso, antes de ter sido arrasada para a abertura da Alameda, por onde se tinha que passar para chegar ao Campo da Feira, nos tempos em que o Pinheiro ali era erguido. Ali, onde a rua se estreitava, e os vidros das janelas chegavam a partir, por não resistirem à vibração provocada pelo ribombar de caixas e bombos, várias vezes o pinheiro perdeu a coroa.
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De todos os números das festas Nicolinas, a entrada do pinheiro é aquele cujo significado mais se alterou. A partir do ressurgimento de 1895 deixou de ser, em definitivo, apenas o acto de levantamento do mastro anunciador das festas, passando a funcionar como um ritual de transmissão dos velhos aos novos, que antigamente se designavam por estudantes aposentados e estudantes no activo.
Antes do final do século XIX não havia tal distinção entre estudantes no activo e aposentados. Segundo o Estatuto Escolástico de 1837, nas festividades a S. Nicolau podiam participar todos quantos frequentassem aulas, públicas ou privadas, bem como os que, sendo de Guimarães, frequentassem, ou tivessem frequentado, a Universidade, além de todos os membros do clero. Perderiam esse direito os que se casassem ou começassem a exercer cargos públicos ou a trabalhar em ofícios mecânicos.
À medida que se caminhava para o final do século XIX, seria visível que as festas a S. Nicolau iam sendo progressivamente assumidas por estudantes no “activo”, ou seja, por aqueles que estavam a frequentar aulas em Guimarães. Os antigos estudantes limitavam-se ao papel de espectadores das festas, transformadas tornaram em momentos de evocação e de saudade do tempo da juventude.
Era assim em 1895, aquando do ressurgimento das festas. Escreveu-se então, no O Comércio de Guimarães, a propósito da entrada do pinheiro daquele ano:
Atrás do “pinheiro”, vinha uma banda de música, tocando o antigo Hino Escolástico, hino que os velhos ouviam com vivíssima saudade e não poucos com arroubos de se lançarem nos braços da mocidade estudiosa, zombando por alguns momentos da idade que lhes vai apontando diariamente o seu ocaso.
Vai no mesmo sentido o que se escreveu no Vimaranense de 1899, também a propósito do pinheiro:
A alguns “velhos” ouvi de comoção dizerem com lágrimas de enternecimento na voz que a alegria dos rapazes os entusiasmava e electrizava fazendo-os perder a cabeça, e que a custo se continham, para não lançarem mão de um zabumba e saltarem para o meio deles a fundir a sua “velhice” ao fogo entusiasta da sua alegria e juventude.
Em 1912, todas as festas foram assumidas pelos estudantes aposentados. Tratou-se, todavia, de uma situação isolada, explicada pela politização da discussão à volta das festas dos estudantes, que estava na ordem do dia na sequência das convulsões sociais que se seguiram à implantação da República. Mas logo se voltaria à antiga ordem: as Nicolinas eram festas dos novos, a que os velhos assistiam com nostalgia e uma mal disfarçada vontade de nelas participarem, como se percebe pelo que se escreveu em 1923, no jornal Gil Vicente:
A entrada esteve boa. Muita zabumbada, muito gado, carro alegórico, etc., etc.
Até os “velhotes” foram lá meter o “bedelho”! Assim é que é. Muita harmonia, muita paz e sossego entre novos e velhos, para que a festa realce como os seus promotores tanto desejam.
Aqueles eram tempos em que a decadência das festas era visível, tendo-se acentuado no final da década de 1920, com a retirada a Guimarães do 6.º e do 7.º anos do Liceu. O Comércio de Guimarães dava voz, em Dezembro de 1928, a um caminho possível para a revitalização das festas:
As Festas Nicolina, que estavam na alma do povo, que para as ruas sai em massa, para ver a chegada do “seu pinheiro” desta forma perde o seu cunho de popularidade.
Mesmo é preciso, para que as mesmas não morram, modificar um pouco as diversões a fazer-se.
Se tanto for preciso, que lhes emprestem um pouco do seu entusiasmo, “os velhos”, aqueles que recordam sempre com saudade, os tempos em que as Festas Nicolinas eram tão queridas quão desejadas.
Em 1936, assinalou-se o centenário do Estatuto Escolástico. Nesse ano, não faltaram ao Pinheiro o entusiasmo dos “novos” e o auxílio e o calor dos “velhos”.
Em 1945, a propósito das bodas de ouro do ressurgimento das Festas Nicolinas, foi dado mais um passo no sentido da apropriação do pinheiro pelos velhos. Foi constituída uma comissão de antigos estudantes, encabeçada por José de Pina, que se propôs auxiliar a Academia para dar maior brilho às festas daquele ano. E, no cortejo do pinheiro de 1945, lá estiveram os velhos, massacrando as peles dos tambores em romagem de saudade pela juventude que já ia longe.
As festas de 1953 marcam o momento em que este processo se acelerou. Naquele ano, os principais números das festas foram “cedidos” aos estudantes velhos. Iniciava-se uma tradição que ainda persiste. No final de um jantar de velhos no Restaurante Jordão, conta O Comércio de Guimarães, por proposta do snr. António Faria Martins, cantou-se o hino Nicolino, rufaram os tambores, e todos se dirigiram para o Cano, onde fizeram a espera ao gigante (o pinheiro), que deu entrada na cidade às 24 horas. Em 1953, os velhos encabeçaram o cortejo do Pinheiro.
Nos anos que se seguiram, os velhos foram reforçando o seu papel nas festas Nicolinas, em especial na entrada do pinheiro. Ao longo da década de 1960, prosseguiu a apropriação do pinheiro, num processo que envolveu o progressivo afastamento dos novos, e que um conhecido cronista da imprensa local (Pedro de Vimaranes, aliás Hélder Rocha) deixou registado em 1965, quando escreveu, na sua crónica no Notícias de Guimarães:
O “Pinheiro” afastou-se do que lhe é tradicional. Os novos receiam incorporar-se nele, pois os velhos açambarcam-no. Antigamente (este antigamente não tem muitos anos) os velhos só zabumbavam depois do mastro-altaneiro chegar ao Campo da Feira.
No início da década de 1970, a entrada do pinheiro já era território sagrado dos velhos. A primazia foi-lhes dada: só eles podiam tocar durante o cortejo. Até ao momento em que o mastro estivesse erguido, os novos não passavam de simples espectadores. Com o pinheiro posto ao alto, caixas e bombos passavam para as mãos dos estudantes no activo. Só então começaria a sua festa. Esta prática, afinal tão recente, era então apresentada como uma antiga tradição, que alguns interpretavam como sendo inspirada em antigos ritos de passagem supostamente ancestrais.
Há quem dê uma explicação de natureza política para a passagem do pinheiro para a alçada dos velhos, segundo a qual, numa manifestação de resistência a uma suposta proibição, em tempo de ditadura, os antigos estudantes teriam desafiado as autoridades, saindo à rua com o propósito de assegurar a continuidade da tradição das Festas Nicolinas. Porém, nada encontrámos que possa confirmar a alegada interdição, até porque estas festas, sendo transversais a todos os estudantes de Guimarães, independentemente de ideologias, de credos ou mesmo de origens sociais, eram acarinhadas e participadas por personalidades com inegável influência social e política, mesmo em tempo de ditadura. Ao que se percebe, a apropriação pelos estudantes veteranos de certos números das festas (o Pinheiro e, mais tarde, as Danças) terá ficado a dever-se, acima de tudo, à percepção das dificuldades dos jovens estudantes no activo em manterem viva a velha chama das festas dos estudantes de Guimarães a S. Nicolau. Eis aqui um bom exemplo da plasticidade destas tradições que, para se manterem, se vão moldando e adaptando ao sentido dos tempos.
Com a massificação do ensino, que se começa a projectar a partir da reforma de Veiga Simão, ainda nos tempos do marcelismo, as festas Nicolinas entraram numa fase de profunda renovação. É certo que houve que vencer entraves levantados por ideias profundamente arreigadas, que muitos defendiam com veemência. Porém, com a instituição do ensino unificado, que terminou com a distinção entre ensino liceal e ensino técnico, e a abertura de novas escolas, o universo dos participantes das festas alargou-se. E, de entre todos os números do programa das Nicolinas, foi no cortejo da entrada do Pinheiro que melhor se percebeu esta transformação.
Faltava dar o passo seguinte: a entrada das estudantes nas festas. O processo não foi simples, nem totalmente pacífico, porque as resistências eram enormes, por vezes raiando a violência física. Levou o seu tempo, mas, no final, aconteceu o que paulatinamente se foi assumindo como uma inevitabilidade. As Festas Nicolinas passaram a ser de todas e de todos os estudantes de Guimarães. A reportagem do jornal O Povo de Guimarães sobre a entrada do pinheiro no ano de 1985, que anunciava em subtítulo “Institualizadas [sic] as Nicolinas unissexo”.
Com carapuças encarnadas ou gorros de quaisquer cores, novos, novas e veteranos, animavam uma noitada que a chuva, ao cair intensamente, não conseguia esmorecer. Necessariamente, o cortejo esteve, como de costume, tão desorganizado quanto possível, mas a quantidade de participantes e a animação de todos criaram-lhe um calor humano que o fez emergir acima do vulgar. Lá vinham, na frente, grupos compactos de velhos, seguidos das caixas e dos bombos, mas numa quantidade que se multiplicava pelas centenas. O troar dos zabumbas, a gritaria, os vivas e os acenos de simpatia eram, sem dúvida, enquadramento que emocionava. De seguida o Carro da Minerva e depois, como sempre, os cartazes e os carros com dísticos, com suas graças ou apontando “desgraças”, antecediam o “Pinheiro”, mastro altaneiro todo engalanado, que era puxado por mais de uma dezena de juntas de bois. Finalmente, um conjunto musical tocava o Hino Nicolino, mais ou menos ao ritmo do “rock”, o que provocava a dançarada e o saltitar de uma centena ou mais de jovens de ambos os sexos, os quais, todos a gritar, acabavam por institualizar, desta vez para sempre, o unissexo nas Festas Nicolinas.




