As Matinas

(ou as Novenas)

De todos os números do programa das Festas Nicolinas, a Novena é o único a que pode ser atribuído carácter religioso. Porém, não é dedicado a S. Nicolau. Até porque, vendo bem, a devoção religiosa dos estudantes de Guimarães de Guimarães a S. Nicolau nunca foi especialmente fervorosa, preferindo uma deusa da mitologia clássica, Minerva, para figurar no seu estandarte ou para abrir o cortejo do Pinheiro. Mais do que devotos de S. Nicolau, os estudantes de Guimarães são fervorosos devotos das festas de S. Nicolau.

Nas frias madrugadas dos dias em que entra o mês de Dezembro, o silêncio da noite de Guimarães era quebrado pelo toque compassado de tambores. Eram estudantes mal dormidos que percorriam as ruas do velho burgo, formando um cortejo singular que ia engrossando à medida que passava pelas casas dos colegas que se lhes deveriam juntar. Dirigiam-se para a capela de Nossa Senhora da Conceição de Fora, a fim de cumprirem uma antiga tradição, herdada dos coreiros da antiga Colegiada, que os obrigava a participarem na novena da Senhora da Conceição. Em chegando às imediações da capela, que está implantada a noroeste do centro da cidade de Guimarães, na margem da antiga estrada que saía pela rua de Santa Luzia em direcção a Braga, reconfortavam os estômagos na venda do Luís Escabrunhão com as quenturas do caldo de unto, feita de cebola, unto (banha ou gordura do redenho de porco), ovo cozido e pão de milho esfarelado, com vinho verde a acompanhar. Finda a cerimónia religiosa, já com o Sol a despontar, os estudantes voltavam a descer à cidade, fazendo-se anunciar pelos seus tambores. Muitas vezes passavam pelo mercado, onde faziam uma colheita mais ou menos forçada de hortaliças com que enfeitavam caixas e bombos, o que dava origem a queixas das regateiras.

Por definição, as novenas são manifestações de culto dedicadas a um santo que se repetem em nove dias sucessivos, como o nome indica. Curiosamente, a novena dos estudantes, que se inicia no dia 30 de Novembro e termina a 7 de Dezembro, apenas dura oito dias. E, muitas vezes, a devoção não seria muito forte, já que os estudantes, ou parte deles, se deixavam ficar pela tasca, enquanto a cerimónia decorria para, no final, se incorporarem no cortejo que regressava à cidade. Afinal, não seria por acaso que eram chamados de devotos do caldo de unto.

Albano Belino, num apontamento manuscrito guardado na Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, relaciona a participação dos estudantes na novena da Senhora da Conceição com a origem da costumeira de Urgezes, quando escreve que um cónego, que não identifica, “estabeleceu a renda aos coreiros por estes assistirem à novena da Conceição”.

O Abade de Tagilde, João Gomes de Oliveira Guimarães, noseu livro Guimarães e Santa Maria, confirma a existência de um contrato entre um cónego e os coreiros da Colegiada, que pode estar na origem desta tradição. Por coincidência, ou talvez não, tem a data do dia de S. Nicolau, 6 de Dezembro, de 1513. Foi subscrito pelo cónego Brás Lopes, da Colegiada de Guimarães, e pelo prioste dos clérigos do coro e um número indeterminado de coreiros, dos quais dezasseis são identificados. Nele ficou registado que os coreiros tinham entregue ao cónego Brás Lopes um pardieiro que possuíam na rua de Infesta, junto ao paço dos Duques, para que ele ali fizesse “umas casas novas às suas próprias custas, em maneira que lhas desse de todo acabadas e perfeitas com as chaves na mão”. O cónego cumprira com o seu compromisso, os coreiros tinham arrendado as casas, “todas de um sobrado”, e, por este contrato, obrigavam-se a cumprir, e a fazer cumprir pelos seus sucessores, o compromisso de promoverem, todos os anos, , nas vésperas e no dia de Nossa Senhora da Conceição, um conjunto de cerimónias religiosas por alma do cónego e dos seus progenitores, na Colegiada e na ermida da Invocação da Conceição. É de crer que, com o tempo, a satisfação destas obrigações perpétuas tenha sido substituída pela participação dos coreiros, e depois dos estudantes, na novena anual da Senhora da Conceição.

Assim sendo, não terá razão Albano Belino quando explica a renda de Urgezes como retribuição da participação dos coreiros na Novena da Conceição. Na verdade, os coreiros participariam na Novena como contrapartida dos que o cónego Brás Lopes lhes prestara, quando lhes transformou um pardieiro em casas de sobrado, de cujas rendas beneficiavam. No entanto, é possível que este contrato tenha estado na origem da pouco credível explicação da origem da renda de Urgezes que vemos repetida há quase dois séculos. Até porque não se percebe como é que um cónego poderia dispor daquilo que não lhe pertencia para entregar aos coreiros, já que o dízimo de Urgezes era propriedade da Colegiada e não de um dos seus cónegos.

Tal como outros números das Festas Nicolinas, a participação dos estudantes na Novena da Conceição foi objeto de queixas e de proibições. Não a participação na cerimónia religiosa, propriamente dita, mas o estrupido dos tambores que perturbava o sono dos que queriam dormir. Em 1905, por exemplo, o Administrador do Concelho proibiu os estudantes de tocarem dentro da cidade, tanto à ida, como à vinda da Novena. E, como de costume, eles não acataram a proibição, como se percebe das queixas e recriminações de que foram alvos, por causarem “um barulho ensurdecedor a horas tão matutinas”.

Ao longo dos anos, a participação dos estudantes na novena da Conceição foi marcada por alguma inconstância, até que acabamos por perdê-la de vista no final da década de 1920. Nos anos que se seguiram, encontrámos, esparsamente, reparos a abusos dos estudantes que perturbavam o sono dos pacatos cidadãos vimaranenses, ao tocarem os seus tambores pela madrugada adentro, mas nenhuma notícia do regresso à Senhora da Conceição. Na maior parte dos anos, os estudantes deixaram de ir à novena da Senhora da Conceição, mas a irreverência atroadora do seu zabumbar continuou a irromper pelas madrugadas vimaranenses, em desafio às autoridades e ao sossego dos dormentes. Chamavam-se matinas a estas madrugadas batidas a toques de tambores. Ainda antes do sol nascer, começavam a sair à rua com caixas e bombos, iam de casa em casa a acordar os retardatários e, como antigamente faziam os estudantes na vinda da novena, rumavam ao mercado onde, em vez de furtarem hortaliças para engalanarem os seus instrumentos de precursão, recolhiam o que os vendedores lhes ofereciam, que depois iam entregar à Casa dos Pobres. A romagem terminava à porta dos colégios de raparigas, onde a paz das aulas matinais era desafiada pela uma poderosa banda sonora.

Em 1988, depois de seis décadas de interregno, a ida dos estudantes às novenas de Nossa Senhora da Conceição de Fora regressou ao programa das festas.