A entrega das maçãs
(ou as Maçãzinhas)


O cortejo da entrega das maçãs, ou as Maçãzinhas, remete-nos para a antiga renda a que os coreiros da Colegiada tinham direito, que deveria ser retirada dos dízimos de Urgezes. Era um cortejo de carros alegóricos, composto por estudantes mascarados, muitos deles a cavalo, que animavam as ruas de Guimarães com as suas danças e folias, para além de cortejaram as moças que os aguardavam em janelas e varandas. Estas danças, que também eram chamadas de bailes ou encamisadas, são, de todas as manifestações festivas dedicadas pelos estudantes de Guimarães ao seu santo padroeiro, as mais antigas de que há memória (sabemos, por um documento de 1664, que foi com comédias e danças que os estudantes angariaram os meios para a erecção da capela de S. Nicolau). A primeira menção à oferta das maçãs às donzelas de Guimarães está numa referência ao insigne pomo inscrita no pregão de 1818 por João Evangelista de Morais Sarmento. Com o decurso dos anos, a entrega das Maçãs foi-se dissociando das danças, que se foram progressivamente recolhendo ao espaço fechado das salas de espectáculos, embora continuassem presentes na tradição dos estudantes desfilarem mascarados no cortejo.
As maçãzinhas são um dos números mais antigos das festas, no qual os estudantes partilhavam com as moças de Guimarães — sem esquecerem as freiras de Santa Clara —, boa parte da renda que recebiam em Urgezes, que incluía dois centos de maçãs. Já nos primeiros pregões apareciam referências à entrega das maçãs rubicundas (vermelhas) ou pomos do amor às damas de Guimarães, no dia 6 de Dezembro. Mas não eram só maçãs que os estudantes levavam às raparigas: em meados do século XIX também ofereciam, cravados na ponta das suas lanças, “açucarados bolos” e “lourejantes castanhas, de mistura com amêndoas, uvas de Alicante, e outras especiarias”. Este número era então chamado de distribuição das maçãs. Só em 1911 é que aparece, pela primeira vez, a expressão “distribuição das maçãzinhas”. Lentamente, chegar-se-ia à designação “cortejo das maçãzinhas” ou, simplesmente, “maçãzinhas”, denominação que seria oficialmente consagrada no programa das Nicolinas a partir do ano de 1961.
O dia 6 de Dezembro era dia dos estudantes andarem pelas ruas a insinuarem-se às as moças, a quem entregavam “a renda”. Nos primórdios das festas, as raparigas não esperavam os estudantes num local previamente estabelecido. Punham-se à janela nas suas casas, onde os rapazes as iam procurar. Assim, antes do Toural e da Praça de S. Tiago, o palco da entrega das maçãs era qualquer lugar de Guimarães onde houvesse uma rapariga à espera delas.
No dia de S. Nicolau de 1883, o jornal O Espectador publicou uma descrição das velhas festas dos estudantes a S. Nicolau, em que se refere a renda de Urgezes e o destino que lhe era dado:
Os coreiros, indo ali todos os anos, no dia de S. Nicolau, receber a renda, vinham depois a cavalo e em hábitos corais, oferecer da mesma às pessoas mais gradas da terra. Esta usança, depois de renhidos demandas e peripécias várias, passou para os estudantes de latim em Guimarães, que deram ao caso as aparências de uma grande festa.
Recebida a renda, os estudantes seguiam em cortejo desde Urgezes, entravam na cidade, “apresentavam-se” ao pinheiro, erguido no Toural, desde o dia 29, e procediam à sua distribuição pela população, guardando as maçãs rubicundas para as donzelas da terra.
Há muito tempo que era assim. Já no pregão de 1827 se lia que
As maçãs, de ouro não, mas tão perfeitas,
Tão dignas de ser dadas, ser aceitas.
Que entre as belas toucadas não irritem,
Mas a fagueiros risos as excitem.
Quando, em 1834, por força da extinção dos dízimos, a Colegiada deixou de receber a renda de Urgezes, também deixou de pagar o que era devido aos estudantes, o que deu origem a um célebre litígio judicial, que acabaria com sentença a favor dos cónegos. No entanto, os estudantes continuaram a entregar as maçãs às raparigas em dia de S. Nicolau, sendo corrente a afirmação de que seriam colhidas pelas suas próprias mãos, como se percebe deste trecho do pregão de 1842:
Iremos todos, de prazer arfando,
Rubros pomos colher, maçãs mimosas,
Para vir ofertar às mais formosas.
Um texto sobre as festas a S. Nicolau que o jornal Tesoura de Guimarães publicou em 1858 dá elementos para a compreensão da raiz da visível decadência das celebrações do dia de S. Nicolau, em que as folias de mascarados já não seriam mais do que uma pálida memória do colorido e da animação que antigamente invadia as ruas de Guimarães naquele dia.
Ontem a distribuição da renda pelas damas começou tarde. Era meio-dia quando os cavaleiros se espalharam pelas ruas chegando às belas meninas, que ornavam as janelas, as coradas maçãs e açucarados bolos que cravados tinham nas pontas agudas das suas lanças douradas.
Às duas horas da tarde estava tudo distribuído.
Poucas foram as exibições que apareceram no resto do dia, mas algumas delas chistosas e picantes.
Aquando do ressurgimento das festas, em 1895, a entrega das maçãs atingiu particular brilho, como então relatava o Vimaranense:
No dia imediato pela uma hora da tarde a distribuição das maçãs às damas que nas suas varandas as disputaram à porfia, e cujas toilettes vistosas imprimiam um cachet alegre e encantador a esta festa juvenil. Antes da distribuição das maçãs o Bando académico, vindo de Santo Estêvão, andou em comum pelo centro da cidade ostentando as suas luxuosas vestes. Era formado por 40 cavaleiros e 5 carros. Antes de se dividir pelos diversos pontos da cidade o seu aspecto era realmente surpreendente e deslumbrante
Nos anos que se seguiram, a entrega das maçãs continuou a ser um dos números centrais das festas dos estudantes de Guimarães. Em 1899, o programa anunciava-as assim:
No dia 6, das onze horas para o meio dia entrará nesta cidade a triunfante cavalhada, vinda dos lados da Vaca Negra, pela rua de Alegria, rua de Camões, S. Francisco, circulando o pinheiro, S. Dâmaso, Senhora da Guia, Oliveira, rua da Rainha, rua de Santo António, Gil Vicente, Paio Galvão, Toural e novo círculo ao pinheiro. Daqui, à voz de – destroçar -distribuir-se-ão as
“Vermelhas maçãs, que as donzelas
Recebem em suas próprias janelas.”
No entanto, apesar da promessa, o cortejo daquele ano não atingiria o fulgor prometido, tendo o jornal O Comércio de Guimarães classificado a entrega das maçãs como “muito pobrezinha, apenas uma dúzia de rapazes, se tanto, tomaram parte neste número do programa, sem dúvida o mais distinto de todos os dos festejos”.
Em 1901, ao contrário do que era costume até aí, em que a entrega das maçãs acontecia de manhã, os estudantes iniciaram a distribuição às três horas da tarde, depois duma cerimónia de continência à bandeira escolástica, hasteada no pinheiro. Nos anos que se seguiriam, realizar-se-iam ora pelo meio-dia, ora de tarde, com tendência para empurrar a celebração para horas mais adiantadas.
Em 1903, organizou-se uma comissão de senhoras, incumbida de premiar o melhor carro do cortejo da entrega das maçãs. Segundo anunciava O Comércio de Guimarães, estariam a ser preparados, pelo menos, uns 14 carros, bem enfeitados, e com bons costumes. Dias depois, o Independente dava conta dos resultados da avaliação da tal comissão:
A entrega das maçãs às gentilíssimas senhoras de Guimarães, realizou-se ontem, aparecendo alguns estudantes ricamente vestidos em carros luxuosamente postos, sendo conferido o prémio das senhoras aos srs. Joaquim Meneses e Gualter Martins, constando o prémio de um bandolim e o segundo de um alfinete de ouro.
Zeca Meira, muito engraçado, representando uma formosa leiteira muito catita, um verdadeiro bijou.
Foi este estudante o que mais engraçado se apresentou no cortejo das maçãs merecendo por isso o prémio da consagração popular. Também se destacaram os académicos João Artur, Couto, Fortunato Sampaio, Fernando Sampaio Bourbon e Gonçalo Sampaio Bourbon.
Em 1903, o cortejo foi muito participado, embora tenha sido classificado como o “mais pobrezinho” que até então se fizera, porque lhe faltou a banda de música a tocar o Hino Escolástico. Nos tempos que se seguiriam, este número das festas nicolinas tenderia a ser classificado mais vezes como um fiasco do que como um sucesso. A adesão dos estudantes ao cortejo das maçãs variava conforme os anos, mas era visível que a tendência seria para uma progressiva perda do antigo brilho. Com altos e baixos, esta foi a tendência que se manteve até aos nossos dias, com o dia de S. Nicolau, 6 de Dezembro, a perder o antigo fulgor, tendendo a deixar de ser o dia principal das festividades de S. Nicolau dos estudantes e Guimarães.
Como se percebe, o cortejo e a entrega das maçãs eram, no passado, algo diferentes daquilo que são hoje. Eram, desde logo, muito mais vistosos e ritualizados. Os estudantes vinham, desde Urgezes, a cavalo (os mais novos) ou em carros (os outros). Em chegando ao Toural, davam meia volta ao pinheiro, em homenagem a Minerva. Seguidamente, dispersavam-se pela cidade, entregando as maçãs, sem desmontarem dos cavalos ou dos carros que os transportavam, espetadas nas pontas das suas lanças, enfeitadas com fitas coloridas, às damas que as aguardavam nas janelas e varandas das suas casas.
Depois da distribuição das maçãs, que acontecia bem mais cedo do que nos dias de hoje, saíam à rua as danças, que eram manifestações de teatro de rua executadas por grupos de estudantes. Estas folias consumavam o número mais esperado das festas, fazendo parte da matriz original das celebrações a S. Nicolau em Guimarães. Na actualidade, as Danças de S. Nicolau, renascidas das cinzas há algumas décadas por obra dos velhos nicolinos, são, a par do pinheiro, um dos momentos mais aguardados e de maior sucesso das festas. No entanto, não preenchem o espaço das antigas exibições de rua que aconteciam no dia 6 de Dezembro e que explicavam porque é que antigamente era este o dia principal das festas.




