História Breve das Festas Nicolinas


Das festas que os estudantes de Guimarães dedicam a São Nicolau se costuma dizer que são muito antigas. Porém, até hoje não foi possível fixar a extensão da sua antiguidade, por não se saber ao certo quando tiveram início. Tem sido levantada a hipótese de terem tido origem no colégio de artes e humanidades que funcionou no Convento da Costa em meados do século XV, que não durou mais do que uma dúzia de anos. A história deste estabelecimento é muito interessante, nomeadamente para o estudo da penetração da cultura humanista em Portugal. Porém, ainda não foi encontrado qualquer documento que o relacione com a introdução em Guimarães do culto a S. Nicolau. Todas as evidências documentadas apontam um pouco mais para trás, no tempo, e na direção de um outro estabelecimento religioso vimaranense com dedicação ao ensino, a Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira.
Das festas que os estudantes de Guimarães dedicam a São Nicolau se costuma dizer que são muito antigas. Porém, até hoje não foi possível fixar a extensão da sua antiguidade, por não se saber ao certo quando tiveram início. Tem sido levantada a hipótese de terem tido origem no colégio de artes e humanidades que funcionou no Convento da Costa em meados do século XV, que não durou mais do que uma dúzia de anos. A história deste estabelecimento é muito interessante, nomeadamente para o estudo da penetração da cultura humanista em Portugal. Porém, ainda não foi encontrado qualquer documento que o relacione com a introdução em Guimarães do culto a S. Nicolau. Todas as evidências documentadas apontam um pouco mais para trás, no tempo, e na direção de um outro estabelecimento religioso vimaranense com dedicação ao ensino, a Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira.
Sendo as Festas Nicolinas promovidas por escolares, para contar a sua história e tentar apurar as suas origens, há que perceber desde quando é que há estudos e estudantes em terras vimaranenses. O ensino em Guimarães será anterior à nacionalidade, por existir, pelo menos, desde que o convento que Mumadona fundou em 959 deu lugar Colegiada. O historiador da cultura Joaquim de Carvalho notou que as referências a um mestre Racemirus, num documento de meados do século XI, e a um mestre Bernaldus, num outro do século XII, sugerem “a existência de um ensino, possivelmente dos rudimentos de Gramática”, hipótese que se transforma em certeza, quando o mesmo autor identifica dois mestres na Colegiada de Guimarães, no ano de 1217 (o Archidiaconus magister Silvester e o Magister Iohannes thesaurarius), e um terceiro, em 1220, no Mosteiro da Costa (Magister Menendus frater Costensis). Os primeiros estatutos da Colegiada já consagravam uma escola capitular, integrando um mestre-escola, com uma prebenda completa instituída por João de Abavila, cardeal-bispo de Sabina e legado da Sé Apostólica que tinha estado de visita a Guimarães, numa carta de 6 de Agosto de 1229, que enviou de Léon [a1] ao D. Prior e que o rei D. Dinis reproduziu e revalidou numa carta régia de 1 de Maio de 1291.
Sendo certo que em Guimarães haverá estudantes desde o século XI, nada sabemos sobre manifestações relacionadas com o culto de S. Nicolau em tempos anteriores ao século XVII.
A referência mais antiga a atos de estudantes de Guimarães em dia de S. Nicolau consta de uma queixa apresentada por uma tal Maria Cardosa contra dois estudantes que, na noite de S. Nicolau de 1645, teriam arrombado um postigo da sua casa. Trata-se de um “instrumento de perdão” lavrado na Quaresma do ano seguinte, quando a queixa foi retirada, por “descargo de consciência” da queixosa. Este documento mostra-nos que, na primeira metade do século XVII, o dia de S. Nicolau já não era indiferente aos estudantes de Guimarães, que o assinalavam com atos de perturbação do sossego público e privado. Mas nada nos diz acerca da existência de festejos organizados, tais como os que conheceremos mais tarde.
Tropelias e arruaças do mesmo género, protagonizadas por estudantes mascarados e armados, eram comuns nos dias e nas noites da Guimarães do século XVII, estando registadas em alguns documentos já conhecidos, de que é exemplo de uma petição que os dignitários da Colegiada enviaram ao rei em 1654, em que se queixavam do Juiz de Fora, que não atuaria com a firmeza necessária contra os escândalos públicos resultantes de “andarem todos os mancebos desta vila carregados de pistolas, sendo mais o uso delas que de espadas, trazendo-as à vista de todos publicamente de dia e de noite”, praticando “grandes insultos e delitos”.
Entre os muitos desaforos que os estudantes de Guimarães praticavam na vila, contava-se o de andarem “publicamente, de dia e de noite, forçando as mulheres e desonrando as donzelas pelas ruas e estradas”, dando-se o exemplos os sque teria sucedido, numa das noites de Dezembro daquele ano, quando estudantes “foram ladrões para abalroarem as portas de uma donzela nobre chamada Luísa Freire, moradora na rua nova” ou, “na outra noite, na mesma rua”, “fizeram engano a uma moça solteira por alcunha a Grelha e lhe dispararam pistolas e apedrejaram as janelas”. Estes incidentes, com escolares por protagonistas, têm claras similitudes com os factos de que foram acusados os dois estudantes a que se refere o instrumento de perdão de 1645 e, por se passarem em Dezembro, possivelmente teriam acontecido no contexto de festejos a S. Nicolau.
Bem mais explícito, quanto à ocorrência em Guimarães de manifestações associadas à celebração de S. Nicolau, será um capítulo de visitação assinado em 23 de Fevereiro de 1675 pelo Arcebispo D. Veríssimo de Lencastre, referente a uma visita à Colegiada de Guimarães que tivera lugar no dia 8 do mês anterior, onde se lê:
Mandamos ao sacristão desta sé e a qualquer pessoa que tiver jurisdição na sacristia com pena de excomunhão por si, nem interposta pessoa empreste alguma capa de asperges para os estudantes, ou outra qualquer pessoa andar a cavalo dia de S. Nicolau Bispo em companhia [a2] dos Escolares causando turvações na vila e muitas indecências a que convém por este meio atalhar.
Pelas informações que contém, este brevíssimo capítulo, inscrito nos autos da visitação eclesiástica, é um precioso testemunho para a compreensão da natureza e da origem dos festejos dos estudantes de Guimarães a S. Nicolau, uma vez que nos remete para práticas que, desde a Idade Média, têm sido identificadas em diferentes lugares da Europa. Estas tradições, com diferentes variantes locais, consistiam em eleger, no dia de S. Nicolau, um estudante para ser bispo por um dia. Este bispo, com as vestes e os símbolos inerentes à condição episcopal, montava num cavalo ou num burro e, acompanhado pelos seus “acólitos”, percorria as ruas e os caminhos, acompanhando as brincadeiras e as travessuras dos seus pares, chegando mesmo a presidir as celebrações religiosas que tinham lugar nas próprias sés. Em alguns lugares, o seu mandato era mais prolongado, estendendo-se até ao dia dos Santos Inocentes (28 de Dezembro). Eram manifestações que consumavam um jogo de inversão da realidade, em que o mundo era virado às avessas, sendo o poder transmitido, temporariamente, a loucos (na Idade Média, as crianças eram equiparadas aos tolos ou aos doidos). Estas práticas eram correntes nas sés catedrais, onde funcionavam escolas onde se ensinava, entre outras disciplinas, a gramática e o latim, tal como acontecia na Colegiada de Guimarães, que tinha estatuto de sé catedral e onde funcionava, como vimos, uma escola capitular orientada por um mestre-escola.
O costume proibido pelo arcebispo em 1675 estava tão enraizado que os estudantes se dispensavam de respeitarem as proibições que lhes tentavam impor, como se demonstra pela sua repetição, a exemplo do que aconteceu em 1705, num novo capítulo de visitação assinado pelo D. Prior da Colegiada, D. João de Sousa, onde se lê:
É coisa muito indecente que, no dia da festa de S. Nicolau, que nesta vila se celebra pelos estudantes, andem os mesmos a cavalo com sobrepeliz e murça, fazendo gravíssima ofensa à autoridade do hábito canonical, e, sendo esta ação muito repugnante à veneração que se deve às vestiduras dos sacerdotes, pois se convertem em usos sumamente profanos, de que forem ordenadas para o culto divino, e detestando tão irreverente abuso, proibimos a todos os nossos súbditos, sob pena de excomunhão maior ipso facto incurrenda, que emprestem murças e sobrepelizes, nem consintam por algum modo, que se sirvam das suas para o dito efeito.
Ofensa à autoridade e à moral vigentes, indecência, abuso, irreverência, eram expressões utilizadas para classificar as práticas dos estudantes de Guimarães em dia de S. Nicolau, o que inscreve estas celebrações no quadro do mesmo ciclo de manifestações de tradição europeia, como os charivaris e as fêtes des fous, que assinalam os dias de S. Nicolau e dos Santos Inocentes. Assim sendo, na falta de outras evidências, estes documentos dão consistência à inclusão das festas de S. Nicolau de Guimarães no quadro das festividades cíclicas de Inverno, de feição carnavalesca que se celebravam extensamente na Europa Medieval, onde a máscara e a inversão da hierarquia social estavam sempre presentes, e que ocorriam entre o dia de S. Nicolau (6 de Dezembro) e o dia dos Santos Inocentes (28 de Dezembro), que serão sobrevivências e adaptações cristianizadas de festas pré-cristãs que podemos integrar no género das saturnais, que na antiga Roma aconteciam em meados do mês de Dezembro e invocavam os tempos míticos da abundância, em que todos os homens seriam iguais, sem distinções entre livres e escravos. O principal elemento caracterizador destas manifestações era a inversão da ordem social. Enquanto decorria a festa, os escravos recuperavam a liberdade e um deles era eleito para governar a cidade. A eleição de obispillos (bispinhos) nas sés catedrais espanholas remetem-nos para esta prática de inversão da ordem e da hierarquia social. Também aí se apagava, temporariamente, o poder instituído, que era entregue a um parvo, num ritual que tinha um evidente sentido lúdico, num jogo de ocultação de identidades onde a máscara, que propiciava a inversão de papéis e a criação de novas personalidades, era um elemento constante.
Estas festas resultavam numa manifestação que conjugava subversão e celebração, correspondendo a tempos tumultuosos, de interregno da normalidade vigente e de folia desbragada que, por regra, coincidiam com as férias dos estudantes, no tempo frio do Inverno. Não faltam nas Festas Nicolinas elementos que nos permitem integrá-las neste quadro.
Não nos é possível dizer desde quando se presta este culto profano a S. Nicolau em terras de Guimarães. No entanto, pela leitura do primeiro arrendamento dos dízimos de Urgezes, datado de 1734, em que o rendeiro ficou com a obrigação explícita de pagar aos estudantes a porção da renda que lhes é devida em dia de S. Nicolau, que constituía um elemento central da sua festa, sabemos que o devia fazer “com toda a boa satisfação, como é uso e costume e foi sempre”. Por esta expressão, “foi sempre”, é-nos lícito concluir que estas festividades já naquele tempo seriam tão antigas que já não era possível precisar a sua origem.
Sobre como seriam as festas nos séculos XVII e XVIII muito pouco sabemos, a não ser o que fica dito acima, a que se acrescentam sucessivas notícias que nos dão conta de que os estudantes costumavam organizar danças, folias e representações teatrais com que, nomeadamente, recolheram os meios que lhes permitiram erguer a capela e sustentar a Irmandade de S. Nicolau.
Só a partir da segunda década do século XIX é que começamos a ter uma visão mais próxima das festas dos estudantes vimaranenses a S. Nicolau, que já então incorporavam boa parte dos elementos que hoje lhes conhecemos. Para esse conhecimento muito contribuem os pregões escritos por João Evangelista Morais Sarmento, os mais antigos que chegaram até nós (1817-1822). A bandeira que anunciava que a festa dos estudantes estava a chegar era erguida, dias antes, no Toural. No dia de S. Nicolau, os estudantes recebiam e partilhavam a renda, invadiam as ruas, castigavam os intrusos com banhos de água gelada no chafariz do Toural, distribuíam as maçãs às damas, enchiam o velho burgo com as suas folias, as suas danças e as batidas ritmadas e ruidosas nos seus tambores, desafiando as autoridades, sempre que eram proibidos de saírem às ruas mascarados. Ou seja, nos seus elementos mais marcantes, as festas já eram, em 1817, o essencial daquilo que são hoje. Por outro lado, ausência de referências anteriores é suscetível de legitimar a suposição de que terá sido no início do século XIX que o programa das festas dos estudantes começou a consolidar o perfil que o tempo consagrou como tradição.
Naqueles tempos, o cerne das festas a S. Nicolau girava em torno da posse de Urgezes, que uma renda costumeira que era retirada do dízimo que cabia à Colegiada para entregar aos seus estudantes. Nos sucessivos contratos de arrendamento deste dízimo, sempre se fez menção à obrigação do rendeiro de dar satisfação à parte da renda que cabia aos escolares no dia do seu orago.
Depois que os dízimos foram extintos, em 1834, a Colegiada declarou-se desobrigada de cumprir com a posse dos estudantes, por a mesma resultar de um rendimento que já não tinha. Os estudantes moveram uma ação contra o Cabido, exigindo a reposição da “imemorial posse de receberem do Reverendíssimo Cabido desta Colegiada em o dia seis de Dezembro pela renda que o mesmo possui em Santo Estêvão de Urgezes duas rasas de castanhas, dois almudes de vinho, dois centos de maçãs, meia rasa de nozes, meia de tremoços, e duas dúzias de palha painça”.
Da leitura dos documentos do processo que correu nos tribunais, percebe-se que a renda não seria um direito dos estudantes, em sentido lato, mas que apenas era devida aos coreiros da Colegiada. A primeira sentença, favorável à reposição do direito dos estudantes, fundamentava-se nas ideias de que aquele costume seria “um incentivo da mocidade preguiçosa para as letras, uma emulação para a estudiosa, um brinco inocente que apurava o génio e desenvolvia os espíritos acanhados e, finalmente, uma usança consagrada pela sua respeitável antiguidade”. Todavia, uma sentença de segunda instância viria a anular a primeira, com o fundamento de que “mal lhes podia ser paga neste ano a costumeira, ainda que direito tivesse a pedi-la”. Assim se extinguiu a imemorial posse de Urgezes.
Na sequência do processo de reivindicação da posse de Urgezes, 39 vimaranenses aprovaram, a 23 de Novembro de 1937, os estatutos da Associação Escolástica Vimaranense, com o fim de “promover a continuação, aumento e luzimento dos festejos do dia 6 de Dezembro, e pugnar por todos os foros e regalias que os Estudantes desta Vila desfrutam, desde tempo imemorial”. Aí se definia quem era estudante e quem gozava de foro eclesiástico: os que frequentavam qualquer aula pública ou mestres particulares de latim, filosofia, retórica ou qualquer outra ciência; todos os eclesiásticos da vila de Guimarães; todos os indivíduos que aí frequentam ou frequentaram aulas da Universidade, desde que não incorressem nas condições que ditavam a perda do foro, a saber: caso se mantivessem solteiros, não tivessem assentado praça nos corpos militares da primeira linha, não se dedicassem ao comércio, nem a qualquer profissão «mecânica» (trabalho com as mãos), não exercessem qualquer cargo público, civil ou militar, não tivessem abandonado os estudos antes de completarem, pelo menos, seis meses de frequência.
O estatuto instituía um júri escolástico, composto de oito vogais, designados em assembleia geral «entre os membros da Associação que tiverem 25 anos de idade”, com mandatos anuais, que tinha como função zelar pelo cumprimento do foro escolástico na função do dia 6 de Dezembro, ou seja, reprimir a participação de intrusos nas festas.
O século XIX foi correndo com as festas a continuarem, embora dando sinais de alguma inconstância. Até que, ao entrar no último quartel de novecentos, parecia ter chegado o seu fim. Durante cerca de vinte anos não se realizaram em Guimarães festas a S. Nicolau dignas desse nome e as tentativas de as fazer ressurgir não passaram de pálidos fogachos, à luz do seu antigo brilho.




