As nêsperas

A nêspera, entre a podridão e a carnalidade.

Se a Nespereira de Raul Brandão fosse um magnoleiro, a nossa literatura seria outra. A verdadeira nêspera (espilus germanica) não é o fruto amarelo que inunda os mercados, mas sim aquele que se come sorvado. Neste conjunto de textos, mergulho na confusão botânica e linguística que envolve estes dois frutos, resgatando a distinção necessária entre a doçura japonesa e a rusticidade europeia. Saiba do que fala quando se invoca a nêspera.

Que frutos são esses, aí acima?

A ambos chamam nêsperas mas, de serem tão diferentes, qualquer um perceberá que devem ser designados de modo diferente, sob pena de não se saber ao certo do que se fala quando se fala duma nêspera.

O primeiro é o fruto da nespereira-do-japão (eriobothrya japonica), árvore da família das rosáceas que, apesar do nome, tem origem na China. Quando maduro é doce e um pouco ácido. Tem a pele amarela e cinco grandes sementes castanhas. É geralmente conhecida por nêspera mas, provavelmente por não saberem o que lhe chamar, têm-lhe dado muitos nomes: no Brasil chamam-lhe ameixa-amarela, mas também pode ser conhecida por ameixa-japonesa ou ameixa-americana; nos Açores chamam-lhe mónica; no Norte de Portugal é conhecida por a magnole, magnólio ou magnório. Os ingleses chamam-lhe loquat ou japanese medlar, os franceses nèfle du Japon, os alemães japanische mispel, os espanhóis nispero japonés ou nispero do Japón

O segundo é o fruto da nespereira-da-europa (mespilus germanica), também da família das rosáceas, árvore cultivada na Europa há milénios. Segundo o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, é um “pomo drupáceo, turbinado, verde-acerbo, tornando-se, ao sorvar, castanho, mole e comestível”.

A nêspera, é o fruto da nespereira. Quando está no ponto de ser comida, tem uma textura mole, a sugerir podridão (só a sugerir) e um sabor único, um pouco ácido e a puxar para a maçã. Os caroços são pequenos (quando comparados com o fruto a que outros dão o mesmo nome) e não são lisos, antes pelo contrário. Assim sendo, este pouco têm a ver com os outros frutos a que, em terras com um léxico mais pobre, também chamam nêsperas. Não lhes conheço outro nome. Em Espanha, chamam-lhes nísperas ou nísperos germanicos, ou ainda níspero, níspero europeo, nisperero europeo, miézpola, míspero, míspola, mispolera, néspera, niéspera, niéspola, níspera, níspola e nispolero. Os ingleses chamam-lhe medlar. Já os franceses, conhecem-no por nefle (de néflier, nespereira) ou cul de chien (= cu de cão). Quem quiser plantar a sua árvore, basta procurar na net 'nespereira comum'.

O outro fruto é o magnório, e nasce da árvore que no Norte de Portugal se chama de magnólio, magnole ou magnoleiro. Magnol é um elemento que aparece na composição de diversas palavras da taxonomia botânica, introduzido pelo fitólogo e monge francês Jacques Plumier (1646-1715), em honra do botânico que primeiro identificou a família das magnólias, o médico e director do Jardin des Plantes de Montpellier, Pierre Magnol (1638-1715). Faz todo o sentido chamam magnório a este fruto. Mas, se lhe quiserem chamar nêspera, façam favor de ser mais rigorosos e dizer nêspera japonesa. Porque a nêspera é a outra.

A história da literatura portuguesa teria de ser reescrita, se a Nespereira onde Raul Brandão escreveu as suas obras maiores se chamasse Magnoleiro...

Do que se fala
quando se invoca a nêspera...

Tem pele amarela e caroços castanhos e brilhantes. Chamam-lhe nêspera, mas ‘a’ nêspera é um fruto bem diferente.

A nêspera tem uma longa história na Europa. Precisa de Verões quentes e de Invernos frios. É colhida no final do Outono e tem a pele castanha, com aspecto terroso, e cinco caroços irregulares. Antes de amadurecer, é rija, de polpa esbranquiçada e adstringente. Absolutamente intragável. Não amadurece na árvore. Tradicionalmente, é colhida antes de atingir a fase de maturação, sendo deixada em repouso sobre palha, durante algumas semanas. Durante esse tempo, fica a sorvar, passando por um processo de amolecimento e ligeira fermentação, em que a sua polpa fica castanha e cremosa, adquirindo a textura e o sabor que lhe são característicos. Há quem diga que sabe a manteiga de maçã (compota de maçã com especiarias), que tem um toque avinhado, reminiscências de sidra ou uma suavidade picante difícil de descrever. Não sei como descrever aquilo a que sabe, mas sei que é uma fruta única, que se adora ou se detesta, mas também de que se aprende a gostar. Gregos e romanos tinham-na em boa conta e foi muito popular na Idade Média europeia. Com ela fazem-se geleias e compotas, que os ingleses servem com caça ou carne assada. Há quem diga que é o melhor fruto para acompanhar vinho e que vai muito bem com o do Porto. Tempos houve em que era considerada, por excelência, uma sobremesa de Natal. Mal amada em tempos recentes, tem vindo a ser redescoberta pelos apreciadores de frutas raras e por cozinheiros inovadores.

A nêspera é um fruto muito antigo, com muita história e, pela sua carnalidade lasciva, com muita literatura, como logo veremos.

Um magnório
não é uma nêspera

Durante largos séculos, em Portugal, o vocábulo nêspera designava, exclusivamente, o fruto castanho, globuloso, acídulo e mole, que, depois de colhido, era acondicionado sobre palha durante algumas semanas, para concluir o seu processo de maturação. No território que hoje é Guimarães, já havia uma “villa nesperaria” no ano 973, a Nespereira de Raul Brandão. Tal designação provinha, necessariamente da nespereira comum ou europeia, com o nome científico de mespilus germanica, já que a outra árvore, a que dá frutos dourados, doces e com grandes caroços castanhos e brilhantes, a mespilus japonica, é originária do Oriente e só foi introduzida na Europa em finais do século XVIII.

Uma pesquisa nos mais antigos dicionários da língua portuguesa permite-nos perceber que, pelo menos até ao início do século XX, quando se invocava a nêspera ninguém pensava no fruto a que por estas terras se chama, correctamente, de magnório, mas sim no fruto a que se refere o poeta vimaranense Manuel Tomás, no poema épico Insulana, publicado em 1635, no verso “E a nêspera, que palhas vem pedindo”.

Eis o que encontrámos, numa busca não exaustiva:

No Vocabulário Português e Latino, de Rafael Bluteau (Volume 5, Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1716):

NÊSPERA. Fruto conhecido, que tem cinco, e às vezes só quatro caroços; não madurece na sua planta, mas sobre palha. É muito adstringente, principalmente antes de madura. É boa para fluxos do ventre, hemorragias, e vómitos. Os caroços são aperitivos para urinar, atenuam a pedra nos rins, e na bexiga, e tomados em pó a expelem. As nêsperas da Grécia não devem de ter mais que três caroços, porque os Gregos lhe chamam Triciccon. Matthiolo faz menção de umas nêsperas que têm cinco caroços; as folhas da planta que as dá são compridas e arremedam às do loureiro, e não são retalhadas nas bordas. Tão grande simpatia tem a Nespereira com o pilriteiro, que enxertada uma na outra, admiravelmente medram. A nêspera madura é gostosa e sadia, particularmente comida sobre carne. Mespilum, i. Neut. Plin.

E a nêspera, que palhas vem pedindo.

Insul. de Man. Thom. Livro 10. Oit.101.

NESPEREIRA. Planta que dá nêsperas. Tem o tronco quase sempre torto, os ramos são duros, e difíceis de quebrar. Parecem-se as folhas com as de loureiro na figura, mas são lanuginosas, e brancas por dentro. Deita umas flores a modo de rolas, brancas ou vermelhas; o cálice em que se encerram é mui recortado; passada a flor, faz-se a modo de maçãzinha quase redonda, carnosa, e tirante a vermelha, quando madura, as pontas superiores do cálice lhe formam uma espécie de coroa. Mespilus, i. Fem. Plin.

No Novo diccionario das linguas portugueza,e franceza, com os termos latinos ..., de Joseph Marques (Tomo Segundo, Volume 2, Na Officina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1764):

Nêspera, fruto conhecido , que tem cinco , e às vezes só quatro caroços: não amadurece na sua planta , mas sobre palha ; as nêsperas são adstringentes. Dizem que os caroços das nêsperas pulverizados, e bebidos em vinho são bons para o achaque da pedra. Com o tempo, e a palha as nêsperas amadurecem, provérbio que quer dizer, que é preciso esperar com constância, e paciência o sucesso de um negócio.

Nespereira, árvore de mediana altura guarnecida de espinhos, que não picam muito: tem as folhas recortadas como as do perrexil ; dá um fruto chamado nêspera , que encerra cinco caroços: é de cor tirante a vermelha, e de forma quase redonda.

No Diccionario na Lingua Portugueza, de António de Morais Silva (Volume 2, Na Impressão Regia, 1831):

NÊSPERAS, s f. pl. Fruto, que se põe a amadurecer em palhas. (mespilum).

No Novo diccionario critico e etymologico da lingua portugueza, de Francisco Solano Constâncio (Ed. Casimir, Paris, 1833):

NÊSPERA, s f. Fruto (Fr. Nefle, e ant. mesple ou mesfle, do Lat. Mesilum, Gr. méspilé) fruto pequeno, globuloso, acídulo, mole, que tem cinco caroços ou pevides.

No Novo diccionario da lingua portugueza ...: Seguido de um diccionario de synonimos, recopilado... de Eduardo Augusto de Faria (vol. III, Typographia lisbonense, 1849):

NÊSPERAS, s f. Fruto (bot.) fruto pequeno, globuloso, acídulo, mole, que tem cinco caroços ou pevides.

No Diccionario encyclopedico ou novo diccionario da lingua portugueza para uso dos portuguezes e brazileiros, de José Maria Almeida e Araújo de Portugal Correia de Lacerda (Volume 2, F.A. da Silva, 1874):

NÊSPERA, s f. Fruto (Fr. Néfle, e ant. mesple ou mesfle, do Lat. Mespilum, Gr. mêspilé) fruto pequeno, globuloso, acídulo, mole, que tem cinco caroços ou pevides.

No Thesouro da lingua portugueza, do Dr. Fr. Domingos Vieira (vol. IV, Ernesto Chadron e Bartolomeu H. de Moraes, Porto, 1876):

NÊSPERA, s. f. (Do latim mespilum). Fruto pequeno e globuloso, doce quando maduro, produzido pela nespereira. — “As Ervas Estomáquicas frias são: Raízes de tanchagem, e de azedas. Paus, sândalos citrinos e rubros. Folhas de tanchagem e murta. Sementes de tanchagem, e de marmelos. Flores rosas vermelhas, e baláustias. Frutos marmelos, pêras, nêsperas, e murtinhos. Sucos dr acácia, que é a árvore da almecega, e de pútegas.” Braz Luiz d'Abreu, Portugal Médico, pag. 356, ¶ 241.

No Novo dicionário da língua portuguesa, Cândido de Figueiredo (1913):

Nêspera, f. Fruto de nespereira, um tanto ácido, e com vários caroços. (Do lat. mespilum)

Nespereira, f. Árvore frutífera, da fam. das rosáceas, (mespilus germanica, Lin.). (De nêspera)

Para que não restem dúvidas. Porque uma nêspera é uma nêspera.


Uma nêspera
é uma nêspera

No início desta série de textos dedicada a esse fruto quase esquecido, escrevi que a nêspera tem muita história e muita literatura. Agora, vou começar a explicar porquê. A forma, a consistência e o processo de maturação da nêspera prestam-se a metáforas, trocadilhos e eufemismo que remetem, nomeadamente, para jogos sexuais e para a fragilidade da condição humana, que diversos escritores trabalharam nas suas obras.

No Novo Diccionario das Linguas Portugueza e Franceza, de José Marques, publicado em 1764, encontrei um provérbio que remete para o processo de amadurecimento da nêspera, que, tal como os pequenos e grandes empreendimentos humanos, carece de tempo, constância e paciência até que alcance a sua plenitude:

Com o tempo e a palha as nêsperas amadurecem.

Por não encontrar qualquer outra referência a este provérbio em língua portuguesa, suponho tratar-se de uma versão aportuguesada do original italiano con il tempo e con la paglia maturano le nespole.

[A propósito, refira-se que, em Itália, o fruto da nespereira europeia, germânica ou comum, não obstante o decaimento, em tempos recentes, do seu cultivo e do seu consumo, a ponto de já ser classificado como uma espécie esquecida ou menor, continua a alimentar tradições populares significativas. Há mesmo uma pequena povoação do Piemonte, Farigliano, onde, a par de S. Nicolau, a nêspera — aí chamada de puciu — é um dos protagonistas de uma festividade que acontece no início de Dezembro de cada ano. Na Fiera dei Puciu e di San Nicolao (Feira da Nêspera e de S. Nicolau) destaca-se a distribuição comunitária da minestra degli uomini, uma sopa particularmente substancial, preparada pelos homens da terra, que dá sustento e ajuda a enfrentar o frio Inverno.]

A nêspera, com o sentido que lhe é dado no provérbio italiano, enquanto metáfora de amadurecimento tardio, tem sido recurso de alguns dos maiores escritores da língua inglesa. O exemplo mais antigo que encontrei leva-nos até à Idade Média. Está nos Contos de Cantuária (The Canterbury Tales), de Geoffrey Chaucer (c. 1343-1400), nos versos 14 a 28 do prólogo do Conto do Feitor (The Reeve's Tale):

Terminou o tempo o pasto, é a hora da forragem. O meu coração está ressequido como os meus cabelos. Acontece-me como às nêsperas, esse fruto que vai de mal a pior, até que fica podre, no refugo ou na palha. Temo que nós, os velhos, obedecemos a esta lei: não podemos ser maduros, enquanto não estivermos podres. Continuaremos a dançar, enquanto o mundo nos der música. Sempre haverá um prego a atravessar-se no nosso desejo, por termos a cabeça branca e o rabo verde, como o alho-porro. A nossa força pode ter desaparecido, mas não nos abandonaram os desejos lascivos. Quando já não os pudermos concretizar, poderemos falar deles, como que a revolver as cinzas em busca do antigo fogo.

Neste trecho da obra de Geoffrey Chaucer, a nêspera surge como metáfora irónica do destino do homem que, com a idade, alcança a maturidade e a sabedoria que lhe permitem contemplar o objecto do desejo com uma veemência que o corpo já resiste a acompanhar.

O excerto dos Contos da Cantuária utilizado nesta publicação é tradução cá da casa, a partir da seguinte versão do texto medieval, em inglês contemporâneo:

A nêspera:
metáfora do destino

A nossa nêspera aparece em quatro obras de William Shakespeare (1564-1616), o maior de todos os dramaturgos e o mais notável escritor de língua inglesa. A nêspera tem, em Shakespeare, diferentes significados e representações simbólicas, que vão desde a figuração de fealdade dos seres humanos, seja física ou de carácter, à representação do que jamais amadurecerá antes de apodrecer ou a referências explícitas aos actos e instrumentos da sexualidade humana.

Shakespeare introduz a “nêspera podre”, com o significado de pessoa repulsiva, numa passagem da peça Medida por Medida, uma comédia sombria de 1603. Surge num diálogo entre duque Vicêncio, governador de Viena, pouco dado a pompa e a circunstância e Lúcio, um egoísta janota, frequentador de bordéis e utilizador recorrente de linguagem desregrada. Era o pai de um bastardo, nascido de uma prostitua filho a uma prostituta, de que fala numa passagem do IV acto:

LÚCIO — Certa vez fui levado à sua presença, por ter engravidado uma donzela.

DUQUE — Fizestes semelhante coisa?

LÚCIO — Por que não? Mas jurei a pés juntos o contrário, para não ser obrigado a casar com aquela nêspera podre.

DUQUE — Senhor, vossa companhia é mais agradável do que honrosa; passai bem.

Medida por medida, acto IV, cena III

Na peça Tímon de Atenas, em que satiriza a ganância e a generosidade pretensamente desinteressada, Shakespeare joga com o vocábulo que em inglês designa a nêspera, medlar, com a palavra meddler, que significa intriguista ou bisbilhoteiro. Aparece num diálogo entre o protagonista, Tímon, um ateniense rico e sem sentido de proporções, que, por um lado, era generoso e acreditava na bondade dos homens e, por outro, cria que até a amizade podia ser comprada, e Apemanto, um filósofo cínico e desagradável:

APEMANTO. Nunca conheceste o meio termo da humanidade, apenas os seus extremos. Quando usavas roupas finas e perfume, riam-se da tua delicadeza exagerada; com os teus andrajos, perdeste a delicadeza e és desprezado pelo excesso contrário. Tens aí uma nêspera, come-a.

TIMON. Eu não como aquilo que detesto.

APEMANTO. Tu detestas as nêsperas?

TIMON. Sim, porque se parecem contigo.

Tímon de Atenas, acto IV, Cena III

Na comédia As You Like It (cujas versões portuguesas têm tido diferentes títulos — “Como Gostais”, “Como lhe Aproveitar” ou “Como vos aprouver”), a nêspera aparece como a representação do que jamais alcançará a maturidade, porque apodrece antes de amadurecer, num diálogo em que Touchstone, um bobo da corte dotado de boa dose de senso comum, e Rosalinda, a filha de um duque exilado, espirituosa e de língua afiada, discutem acerca de uns versos galantes. Touchstone pergunta a Rosalina porque é que, sendo aqueles versos tão tontos, se deixara contagiar por eles.

ROSALINDA. Sossega, seu tolo estúpido. Encontrei-os numa árvore.

TOUCHSTONE. Em verdade, maus frutos dá essa árvore.

ROSALINDA. Vou enxertar-te nela e, a seguir, numa nespereira. Dará os frutos mais precoces da região, porque tu apodrecerás antes de amadureceres, e essa é a verdadeira virtude da nêspera.

As you Like it, Acto III, cena II

Mas a aparição mais surpreendente do fruto da nespereira europeia na obra de William Shakespeare acontece em Romeu e Julieta, a tragédia que se transformou no modelo do amor sublime, idealizado e platónico. Porém, o que a nêspera ali representa nada tem de casto. Quem a traz à cena é o espirituoso Mercúcio, amigo de Romeu, numa fala de um diálogo que mantém com Benvólio onde, a dada altura, diz:

Se o amor é cego, não pode acertar o alvo.

Agora ele vai sentar-se debaixo duma nespereira,

A desejar que a sua amada fosse aquela espécie de fruta

A que as moças chamam nêspera, quando riem sozinhas.

Oh, Romeu, fosse ela, oh, fosse ela

Um etecetera aberto, e tu uma pêra poperina!

Romeu e Julieta, acto II, cena I

Se o leitor parou na última linha da fala de Mercúcio, a pensar se ele tinha dito o que parece que disse, respondo-lhe com o que encontrei num estudo sobre a misoginia desta personagem do Romeu e Julieta:

Yes, he really did say that. And it really means what you think it means.

(Sim, ele disse realmente isso. E isso significa realmente o que você pensa que significa).

Depois de lermos a fala de Mercúcio, não nos resta espaço para grandes dúvidas acerca do que ele pretende significar quando utiliza as expressões nêspera (medlar), “etecetera aberto” (open et coetera) e pêra poperina (poperin pear).

No idioma português, nêspera é uma das muitas expressões populares que são usadas na linguagem popular para significar a genitália feminina, assim como o traseiro, as nádegas ou o ânus (vai levar na nêspera, ó cabeludo!). O mesmo acontece na língua inglesa, onde a nêspera (medlar) também é conhecida, desde a Idade Média, pelo nome sugestivo de “open-arse”, que, do mesmo modo, tanto pode referir-se à vagina como ao traseiro.

Parece certo que o “et coetera” que aparece nos primeiras edições impressas do Romeu e Julieta terá sido introduzido pela censura, como um eufemismo para “arse”. Em versões restauradas do texto se Shakespeare, tem sido assumida a expressão “open-arse” em substituição do “et coetera” postiço.

Quanto à “pêra poperina”, diversos autores afirmam tratar-se de uma pêra originária de Poperinge, na Bélgica, que seria muito popular na Inglaterra medieval, mas de que se terá perdido rasto. Teria um formato oblongo, com vislumbres fálicos. Assim sendo, parece óbvio o sentido que Shakespeare lhe dá na fala de Mercúcio. Há também quem decomponha a sonoridade de poperin em “pop-her-in”, algo que poderia ser traduzível pela expressão, tão rude quanto explícita, “mete-lha”. De qualquer modo, poucas dúvidas devem restar quanto ao que significam os eufemismos “etecetera aberto” e a “pera poperina”, nem o que Mercúcio sugere que Romeu e Julieta deveriam fazer com eles...

As traduções dos trechos das obras de Shakespeare utilizadas neste artigo são da nossa responsabilidade. Aqui ficam os respectivos textos em língua inglesa:

A virtude da nêspera:
apodrecer antes de amadurecer

A nêspera e a sorva (fruto da sorveira) são as personagens do poema Medlars and Sorb-Apples, incluído na obra Birds, Beasts and Flowers, de D. H. Lawrence (1885-1930), publicado pela primeira vez em 1923, e que tem sido classificado como o melhor livro de poesia do prolífico autor de O Amante de Lady Chatterley. Nesse poema complexo, carnal e pulsante (Adoro sorver-te das tuas peles / Tão castanha e macia e deslizando delicada), Lawrence joga com os opostos ilusórios recorrentes na sua obra e exalta a beleza que encontra naquilo que é feio. Aqui, o escritor celebra a decomposição característica do processo de maturação da nêspera, representado como uma metáfora da finitude humana, marcada pela efemeridade, pelo declínio e pela podridão.

Nêsperas e Sorvas

D. H. Lawrence

(tradução de Inês Lago)

Adoro-te, podre,

Deliciosa podridão.

Adoro sorver-te das tuas peles

Tão castanha e macia e deslizando delicada

Tão mórbida, como dizem os italianos.

Que raro, poderoso, reminiscente sabor

Surge da tua queda pelos estágios do declínio:

Torrente dentro de torrente.

Algo do mesmo sabor do vinho moscatel de Siracusa

Ou o vulgar Marsala.

Se bem que até a palavra Marsala não tardará a soar a preciosidade

No Oeste proibicionista.

O que é?

O que é, na uva a fazer-se passa

Na nêspera, na sorva.

Odres de castanha morbidez,

Outonal excrementa;

O que é isso que nos recorda os deuses brancos?

Deuses nus como nozes branqueadas.

Estranhamente, de forma quase sinistra, cheiram a carne

Como que suados,

E encharcados de mistério.

Sorvas, nêsperas com coroas mortas.

Digo: maravilhosas são as experiências infernais

Órfico, delicado

Dionísio do Submundo.

Um beijo e um vívido espasmo de despedida, um momentâneo orgasmo de ruptura.

Depois sozinho ao longo da estrada húmida, até à próxima curva.

E aí, um novo companheiro, uma nova separação, um novo desfundir em dois,

Um novo arquejo de maior isolamento,

Uma nova embriaguez de solidão, entre folhas geladas, em queda.

Descendo as estranhas veredas do inferno, mais e mais intensamente sozinho,

As fibras do coração separando-se uma após a outra

E ainda assim a alma continua, de pés descalços, cada vez mais vividamente incorporada

Como uma chama que sopra mais e mais branca

Numa mais e mais profunda escuridão

Cada vez mais requintada, destilada em separação.

Então, nas estranhas retaliações de nêsperas e sorvas

A essência destilada do inferno.

O requintado odor das despedidas.

Jamque vale!

Orfeu e as silenciosas veredas do inferno, sinuosas, entupidas de folhas.

Cada alma partindo com o seu próprio isolamento,

A mais estranha de todos as estranhas companhias,

E a melhor.

Nêsperas, sorvas

Mais que doce

Fluxo de Outono

Sorvido das vossas bexigas vazias

E empurrado, talvez, com um golo de Marsala

Para que a uva divagante caída do céu possa juntar a sua música à tua,

Órfico adeus, e adeus, e adeus

E o ego sum de Dionísio,

O sono io de bebedeira perfeita

Embriaguez da última solidão.

A virtude da nêspera:
apodrecer antes de amadurecer

Natureza morta com três nêsperas (c. 1696-1705), de Adriaen Coorte.

A Nespereira
de Raul Brandão

E depois há Nespereira, a freguesia do Concelho de Guimarães onde, há mais de um século, Raul Brandão e Maria Angelina decidiram construir a sua casa. Será que o nome lhe vem da árvore das nêsperas?

A acreditar no que escreveu o pároco de Santa Eulália de Nespereira, o vigário Francisco Rodrigues Cardoso de Assis, na resposta que deu em 5 de Maio de 1842 ao Inquérito Paroquial concelhio, o nome da freguesia seria uma corruptela do nome de uma mulher nobre, proprietária de boa parte dos bens da freguesia. Diz ele:

O orago desta freguesia é Santa Eulália de Nespereira, este sobrenome do orago: vem de em tempos muito remotos haver nesta freguesia uma mulher nobre, e quase Senhora da maior parte dos prédios, e ao mesmo tempo benfeitora desta igreja, é a razão porque acresceram ao orago Santa Eulália de Inês Pereira, que assim se chamava a tal mulher, e depois corrupto vocábulo, ficou Nespereira.

Nespereira é um topónimo comum a quatro freguesias de Portugal (e a mais umas quantas da Galiza), todas elas muito antigas. Situam-se, além de Guimarães, nos concelhos de Lousada, Cinfães e Gouveia. Curiosamente, na Nespereira de Gouveia, o topónimo também derivaria da contracção do nome de uma outra Inês Pereira, que ali teria erigido uma casa acastelada.

Porém, é seguro que a Inês Pereira da Nespereira vimaranense nunca existiu, o que não quer dizer que não tenha havido, no passado mais remoto da história da freguesia, uma grande proprietária que foi senhora da maior parte dos bens da terra. Existiu mesmo e todos a conhecemos: chamava-se Mumadona Dias e aparece no documento mais antigo onde está inscrito o nome desta freguesia. Foi lavrado há mais de mil anos, no dia 5 de Agosto do ano de 950. Nele, a Condessa Mumadona faz uma divisão de bens pelos seus filhos, cabendo a “villa nesperaria” a seu filho Gonçalo (documento VI da colecção Vimaranis Documenta Historica, VMH). Mais tarde, no seu testamento, com data de 26 de Janeiro de 959, Mumadona destinou Nespereira ao mosteiro que fundou em Guimarães (VMH, doc. IX).

Ainda antes de findar o século X, Nespereira aparece num outro documento. Trata-se de um documento de uma transacção, datado de 6 de Novembro de 973, em que um tal Idiberto e a sua mulher Fradegundia venderam a Guntemiro e aos frades e freiras de Guimarães, metade da igreja de “sancte eolalie que est fundata in villa nesperaria subtus monte de cauallus territorio bracharensis”, ou seja, de Santa Eulália da Vila de Nespereira sob o monte Cavalo, no território bracarense (o Monte Cavalo é o nome que antigamente era dado à corda de montes situados entre o rio Vizela e o rio Ave).

Nos séculos que se seguiram, nunca perdemos o rasto a esta Nesperaria (que, a partir do início do século XI já se escrevia como hoje, Nespereira), sem que haja sinal de qualquer grande proprietária local chamada Inês Pereira. Assim sendo, só nos resta concluir que a freguesia onde Raul Brandão escreveu parte significativa da sua obra literária tem o nome de uma árvore que dá nêsperas. Que, para que não restem dúvidas, não é a sua homónima japonesa, a que dá o fruto dourado e de grandes caroços castanhos e brilhantes a que chamamos magnórios (e a que já ouvi chamar, muito apropriadamente, japonas). Dessa árvore importada do Oriente só temos notícias na Europa a partir dos finais do século XVIII, quando a Nespereira de Guimarães já somava mais de oito séculos.

receitas

Nêsperas:
Modos de usar

Receita:
Geleia de nêspera

Por estes dias, têm-me chegado comentários curiosos: dizem-me que esta história da nêspera é muito interessante, mas que não será ela que os levará a alterarem a sua disponibilidade para levarem aquele fruto às suas mimosas bocas. São os que, por comerem com os olhos, não se atrevem a provar um fruto que parece podre. Por outro lado, para além do preconceito, o calendário também não é muito propício para que a nêspera tenha um valor económico significativo, já que a janela de tempo em que está em condições de ser consumido é muito estreita, porque a distância que vai do estado de fruto sorvado, o único em que é comestível, ao de fruta podre é muito curta, o que dificulta, nomeadamente, a sua comercialização mais extensa.

No entanto, há processos de transformação e conservação deste fruto tão arredio que lhe acrescentam procura e valor económico, nos países onde tais artes se praticam, como é o caso da Inglaterra, onde há quem acredite no comeback da velha nêspera, como é o caso de Jane Steward da Eastgate Larder. Muito me espantaria se por cá não houvesse quem lhe seguisse as pisadas.

Com nêsperas fazem-se licores, nomeadamente em Itália. Na Grã-Bretanha é muito popular uma espécie de marmelada de nêspera a que os ingleses chamam de medlar cheese, mas, provavelmente, é na forma de geleia que este fruto invernal é mais apreciado. Os ingleses servem-na como acompanhamento de caça e de outras carnes, usam-na como condimento, para enriquecer molhos e têm-na como acompanhamento adequado para queijos suaves.

Para quem queira experimentar, aqui fica a receita da medlar jelly, dada pelo nosso conhecido (da televisão) Nigel Slater, que encontrei na página do jornal The Guardian.

Se ainda têm nêsperas à mão, atrevam-se. E, depois, contem como foi.

Geleia de Nêspera

Para que a geleia se possa definir, uma parte das nêsperas deverão estar duras, não sorvadas. Maçãs pequenas, ácidas, ou mesmo maçãs bravas, também. ajudam A geleia deve ficar brilhante e muito macia. Mantenha-a transparente e bonita, não remexendo muito a fruta enquanto a coze.

Dá para 4 frascos de geleia, aproximadamente.

Nêsperas sorvadas 1,6 kg

Nêsperas firmes, 400g

Limões, 3

Maçãs, 2 pequenas, tão ácidas quanto possível

Água, 2 litros

Açúcar, aproximadamente 800g

Remova todas as folhas das nêsperas e procure sinais de apodrecimento. Devem estar escuras e macias.

Corte os frutos ao meio e coloque-os numa panela muito grande e funda. Corte também em metades os limões e as maçãs e junte-os às nêsperas. Cubra com água. Coloque ao lume. Quando a água ferver, baixe a temperatura e cubra a panela parcialmente com uma tampa. Deixe cozer durante uma hora.

Tome cuidado para que a água não evapore e mexa a fruta de quando em vez com uma colher de pau. Procure não agitar ou esmagar a fruta em demasia, a fim de evitar que a geleia fique turba.

Despeje a fruta e o líquido que se formou num saco próprio para geleia, suspendendo-o sobre um jarro grande ou tigela. (eu penduro o meu numa das torneiras do lava-louças.) Deixe o suco a gotejar no recipiente, dando-lhe um aperto ocasiona, até que todo o suco tenha escorrido. Deve ficar com uma quantidade de detritos secos de nêspera saco e um jarro cheio de suco claro, laranja-avermelhado.

Despeje o suco de novo para a panela limpa e ferva a fogo solto durante 6 minutos, adicionando, em seguida, a mesma quantidade de açúcar (cerca de 800g ou 4 xícaras). Quando o açúcar se dissolver, ferva por mais 2 minutos. Em seguida verta a geleia para frascos limpos, quentes e vedados. Deixe esfriar.

Se a sua geleia de nêspera ainda estiver líquida na manhã seguinte, volte a despejá-la numa panela grande e coloque-a a ferver por 4-8 minutos, devolvendo-a aos frascos, em seguida.

Receita:
Medlar cheese

Um dos problemas da nêspera é a estreita janela de tempo em que pode ser consumida, o que faz com que se perca uma boa quantidade deste fruto tão antigo e tão especial. No entanto, há maneiras de o conservar, acrescentando-lhe valor. Já vimos como se faz geleia de nêspera, agora veremos como se transformam as nêsperas sorvadas numa conserva de fruta com a consistência e o aspecto da marmelada, embora com um sabor algo diferente.

Os ingleses chamam-lhe medlar cheese mas, ao contrário do verdadeiro queijo, não é feito com leite, mas sim com nêsperas e açúcar, e usam-no como acompanhamento de carnes, de queijos ou, simplesmente, como doce de sobremesa, que acompanha com nozes e vinho do Porto. A receita é relativamente simples (o que dá mais trabalho é separar a polpa da fruta da casca e dos caroços, mas não será canseira de grande monta, se se cozerem primeiro as nêsperas). Aqui fica:

Utilizam-se nêsperas sorvadas, isto é, no ponto em que já podem ser degustadas. Depois de lavadas em água corrente, colocam-se inteiras numa panela. Desfazem-se com um esmagador de batatas, junta-se cerca de 750 ml de água fria, mistura-se bem e deixa-se cozer durante cerca de 20 minutos, de modo a que a polpa se desprenda por completo da casca e das sementes. Passa-se o puré que se formou por uma peneira ou um coador. Pesa-se e adiciona-se metade do peso de açúcar. Neste ponto, pode-se juntar uma pitada de sal, sumo de um limão, e/ou pimenta da Jamaica ou all spice (uma mistura de especiarias com cravinho, canela, noz moscada e gengibre), raspa de casca de laranja. Leva-se de volta ao lume, para o açúcar se dissolver, mexendo para evitar que pegue ao fundo. Quando atingir o ponto desejado, verte-se em formas, ainda quente (aqui, todo o cuidado será pouco, li algures, e depois arrependi-me de me ter esquecido do que li, que é como lava derretida…). Deixa-se esfriar, pelo menos uma noite. Quando estiver em ponto de ser desenformado, embrulha-se em papel vegetal e deixa-se secar. Ficará com a consistência da nossa marmelada. Aguenta muito tempo. A fotografia que vai acima foi tirada no dia em que escrevo e mostra o medlar cheese que preparei há um ano. E o tempo só o melhorou.

Manteiga cremosa de nêspera

Como a maior parte dos frutos, as nêsperas podem ser consumidas ao natural ou preparadas de diferentes formas, especialmente em compotas, geleias e marmeladas. Aqui deixo uma receita de "manteiga" de nêsperas, que encontrei na página Kitchen and Other Stories da chef Tripti, que conta que:

Esta receita transforma nêsperas amassadas numa manteiga de nêspera naturalmente doce. Uma conserva simples e fácil, à moda antiga, que não é geleia, mas ainda assim captura o sabor caramelizado da fruta.

Para esta receita, são necessários apenas três ingredientes, em proporções não indicadas (medidas a gosto, portanto):

  • Nêsperas: maduras, descascadas, trituradas e transformada em puré.

  • Açúcar escuro: Complementa a doçura natural da nêspera, realçando delicadamente o sabor adocicado e caramelizado.

  • Água.

O processo é simples.

Retira-se a casca das nêsperas.

Transfere-se a polpa da fruta para uma panela e adicionando-lhe a água. Leva-se ao lume, até que ferva. A seguir, cozinha-se em fogo baixo por 15 minutos, mexendo continuamente. À medida que a mistura engrossar, irá mudando de cor, ficando pronta quando estiver com o acastanhado do chocolate.

Quando estiver pronta, transfere-se para frascos esterilizados, que se fechem bem assim que o preparado esfriar.

Para dar um sabor extra, pode-se adicionar canela em pó, por exemplo.

Segundo a receita, esta manteiga pode ser conservada até três meses, à temperatura ambiente, em local fresco e escuro, ou no frigorífico por até 3 meses.

Havemos de experimentar.