Eduardo de Almeida

Escritor, jornalista, político, deputado constituinte, um dos últimos românticos da República.

Vimaranense, republicano e escritor

Eduardo Manuel de Almeida Júnior nasceu em Guimarães, a 3 de fevereiro de 1884, no seio de uma família abastada. Após completar o ensino secundário no Colégio de S. Dâmaso, partiu para Coimbra, onde se formou em Direito em 1905. Desde cedo demonstrou espírito crítico e combativo, aderindo aos ideais republicanos e anarquistas. Em 1902, escandalizou a sociedade vimaranense com o irreverente folheto Burgo Podre, escrito com Alfredo Pimenta.

Advogado de mérito, notabilizou-se pela sua eloquência e coragem, como no célebre caso de defesa de Antónia de Macedo, acusada de triplo infanticídio. Contudo, a sua vocação principal foi a escrita. Publicou o romance A Lama (1905), influenciado pelo naturalismo de Zola, e numerosos textos em jornais e revistas, sobretudo na Revista de Guimarães, onde se revelou também historiador atento à memória local.

Com a implantação da República, foi nomeado administrador do concelho de Guimarães e, em 1911, eleito deputado à Assembleia Constituinte. Apesar de presságios de uma auspiciosa carreira política, afastou-se voluntariamente da vida partidária após 1915, para se dedicar aos negócios familiares e à intervenção cívica e cultural.

Figura central da Sociedade Martins Sarmento, que presidiu entre 1921 e 1926 e novamente em 1929–1931 e 1945–1946, liderou o renascimento da instituição após anos de crise, restaurando-lhe o papel de promotora da instrução e da cultura. Reativou a Revista de Guimarães e fomentou a investigação histórica sobre a cidade.

Autor de romances, novelas, ensaios jurídicos e estudos históricos, Eduardo de Almeida foi um dos últimos românticos da República. Faleceu a 6 de janeiro de 1958, sendo sepultado no cemitério da Atouguia, junto de Raul Brandão e Carlos Malheiro Dias.

Eduardo de Almeida, nota biográfica
Percurso
  • 1884 (3 de fevereiro) – Nasce em Guimarães, na Rua de S. Dâmaso.

  • 1900 – Parte para Coimbra para estudar Direito.

  • 1902 – Publica com Alfredo Pimenta o folheto Burgo Podre.

  • 1904 – Participa no protesto estudantil contra o conservadorismo da Universidade de Coimbra.

  • 1905 – Licencia-se em Direito; publica o romance A Lama.

  • 1906 – Inicia colaboração com a Revista de Guimarães.

  • 1908 – Integra a Direção da Sociedade Martins Sarmento.

  • 1909 – Transfere-se para o Porto e estabelece escritório de advocacia com Alfredo Pimenta.

  • 1910 – Após a Implantação da República, torna-se o primeiro administrador republicano do concelho de Guimarães.

  • 1911 – Eleito deputado à Assembleia Constituinte.

  • 1914 – Assume o cargo de chefe de gabinete do Ministro das Finanças, Manuel Monteiro.

  • 1915 – Regressa a Guimarães para gerir os negócios da família após a morte do pai.

  • 1916–1917 – Redator principal do jornal O Republicano.

  • 1921–1926 – Presidente da Direção da Sociedade Martins Sarmento; relança a Revista de Guimarães.

  • 1929–1931 – Segundo mandato na presidência da SMS.

  • 1931 – Diretor do jornal O Povo de Guimarães.

  • 1945–1946 – Terceiro mandato como presidente da SMS.

  • 1958 (6 de janeiro) – Falece em Guimarães. Sepultado no cemitério da Atouguia.

Eduardo de Almeida

Eduardo Manuel de Almeida Júnior nasceu no dia 3 de Fevereiro de 1884, numa casa na rua de S. Dâmaso, em Guimarães. O seu pai, de quem tomou o nome, era um destacado homem de negócios. Estudou no Colégio de S. Dâmaso, que então funcionava no antigo Convento da Costa, onde completou o ensino secundário. Partiu para Coimbra em 1900, com o mesmo destino da maioria dos filhos da burguesia da terra que prosseguiam estudos superiores, inscrevendo-se na Faculdade de Direito da Universidade, cujo curso completaria em 1905, aos 21 anos.

Eduardo de Almeida era dotado de um espírito inquieto, que não se conformava à justiça que via campear no mundo em que nasceu. Em 1902, compõe com Alfredo Pimenta, seu contemporâneo em Coimbra, um folheto com 16 páginas intitulado Burgo Podre, escrito em prosa (de Eduardo de Almeida) e em versos (de Pimenta), onde se propunham levar moralidade aos domicílios vimaranenses, levando-a lá como o carvoeiro vos leva o carvão e a lavadeira a vossa roupa limpa de manchas. Meio século mais tarde, Mário Cardozo classificaria a obra como um folheto de má prosa e de péssimos versos. Alguns anos antes, Alfredo Pimenta recordava aquela “coisa inconcebível” que os dois jovens vimaranenses tinham trazido de Coimbra no fundo das malas: dezasseis página tremendas, irreverentes, sacrílegas com que nos propúnhamos dinamitar o burgo, purificar o Céu, e alimpar as almas, e lavar os corpos dos nossos conterrâneos”. A folha deu brado, provocou algum escândalo (as dezasseis páginas do Burgo Podre estalaram como chicotadas coléricas, juvenalescas e voltairianas), mas a publicação finou-se ao segundo número.

Por essa altura, já Eduardo de Almeida se envolvera na agitação política do tempo, aderindo aos ideais republicanos de orientação libertária. Integrou ao Núcleo de Educação Anarquista e, com Campos Lima e Alfredo Pimenta, colaborou no órgão daquela associação, a Era Nova. Em 1904, ergueu a sua voz contra o espírito retrógrado da Universidade de Coimbra, ao lado de António José de Almeida e de Manuel Monteiro.

Concluído o curso, regressa a Guimarães, onde se faz advogado, onde cedo consolidaria a sua fama de causídico competente e eloquente, com o um memorável tirocínio num caso particularmente difícil, em que assumiu a defesa de Antónia de Macedo, a Tiça, mulher do povo acusada da prática de triplo infanticídio e que, lida a sentença, acabaria absolvida.

Eduardo de Almeida foi, antes do mais, um homem de letras. Publicou o seu primeiro romance, A Lama, em 1905, ainda em Coimbra, um manifesto dirigido contra a sociedade decadente e desigual, onde proliferava a miséria, com uma clara influência da obra de Émile Zola. Desde muito jovem, colabora em inúmeras publicações periódicas, por onde irá dispersar ioncontáveis textos dedicados aos mais variados assuntos. O seu primeiro artigo na Revista de Guimarães foi publicado em 1906.

Em 1908, integrou, como secretário, a Direcção da Sociedade Martins Sarmento, cargo que abandonaria quando se mudou para o Porto, em Fevereiro de 1909, para estabelecer escritório de advocacia em sociedade com o seu amigo Alfredo Pimenta. Esta ausência de Guimarães não se prolongaria por muito tempo. Não tardava, dava-se a revolução por que se batera, com a instauração da República em Portugal. É chamado à cidade natal, onde irá assumir as funções de primeiro administrador do Concelho do novo regime. Do seu exercício nesse cargo ficariam na memória, antes de mais, as suas profundas preocupações sociais. Em 1911, foi eleito deputado por Guimarães para a constituinte. No Parlamento, recolheu reconhecimento e aplausos pelas suas qualidades humanas e pelos seus dotes de oratória. Em 1914, foi chamado para Chefe de Gabinete do Ministro das Finanças, Manuel Monteiro, num governo presidido por Bernardino Machado. Pelo seu perfil político, parecia talhado para uma auspiciosa carreira política. Porém, decidiu que esse não seria o seu caminho, recusando convites que lhe foram dirigidos.

Regressa a Guimarães após a morte de seu pai, em 1915, para assumir a direcção dos negócios da família, afastando-se, em definitivo, da política activa. Não obstante, manteve-se fiel, durante toda a vida, aos seus ideais republicanos e democráticos, sempre presentes nas suas intervenções públicas, nomeadamente nos textos que foi publicando na imprensa. Ainda seria redactor principal do jornal O Republicano, entre 1916 e 1917, e um dos directores do jornal O Povo de Guimarães, em 1931.

Eduardo de Almeida é uma figura incontornável na história da Sociedade Martins Sarmento. A ele se deve uma obra que devolveu o prestígio a esta instituição vimaranense, fortemente afectado na sequência da instauração da República e do desaparecimento de quase todos os seus fundadores. Depois de 1910, a SMS mergulhou numa crise que se aprofundaria com o correr dos anos

Ainda nos primeiros dias da República, Alfredo Guimarães empregava palavras corrosivas para descrever a situação que então atravessava a SMS:

Tal como está sendo gerida, a Sociedade Martins Sarmento é uma sucursal do convento do Quelhas, com beatério e impostura a enlameá-la. Não se serve a instrução popular; sufoca-se, diminui-se a alma interessada do povo. E isto por más intenções, por mesquinhos cálculos de vida social, por falta de desassombro, de inteligência e de convicções.

Com a República, sucederam-se os conflitos entre a Direcção da Sociedade e a Câmara Municipal. Os homens que então estavam à frente da Sociedade, defensores da Monarquia e incapazes de se adaptarem à nova realidade, permaneceram irredutíveis numa postura de resistência à imparável marcha do tempo, assumindo posições que apenas contribuíram para diminuir a Sociedade na sua dimensão institucional: rejeitaram o uso na correspondência da fórmula oficial (Saúde e Fraternidade), continuando a usar, não sem intenções provocatórias, a velha expressão Deus guarde V.ª Ex.ª; retiraram da sala de leitura os jornais de inspiração republicana que eram recebidos na Biblioteca; fizeram desaparecer o mastro do varandim voltado para a Rua Paio Galvão, para impedir que a bandeira nacional verde-rubra fosse hasteada em dias de festa. Como consequência de se ter transformado num reduto de resistência monárquica, em conjugação com a incapacidade dos seus directores para enfrentarem os problemas com que a Instituição se confrontava, a Sociedade Martins Sarmento passou por tempos de turbulência, manifestando sinais de degenerescência e de apatia cultural. A suspensão da publicação da Revista de Guimarães, em 1914, era um claro sinal da doença que minava aquela que tinha sido uma das mais relevantes instituições culturais portuguesas.

A situação parecia irreversível, até que Eduardo de Almeida foi chamado, em 1921, para as funções de Presidente da Direcção da SMS. Juntou à sua volta um conjunto heterogéneo de figuras, com diferentes orientações político-ideológicas, mas unidas por um objectivo comum: pacificar a Instituição, devolvendo-a à sua função original de promotora da instrução popular e da cultura. É de inteira justiça dizê-lo: aquilo que a Sociedade Martins Sarmento é hoje resulta, em grande medida, da acção refundadora de Eduardo de Almeida, que lhe devolveu o prestígio e o dinamismo que marcaram as primeiras décadas da sua existência.

Uma das primeiras medidas da Direcção de Eduardo de Almeida, retomar a publicação da Revista de Guimarães, demonstrou que os novos tempos recolocariam a Sociedade no seu caminho original, em grande parte centrada na defesa do património histórico, arqueológico e artístico de Guimarães. Dava-se início a um novo ciclo na vida da Sociedade Martins Sarmento, que voltava a ser a Promotora da Instrução Popular.

Eduardo de Almeida foi Presidente da Direcção da Sociedade Martins Sarmento entre 1921 e 1926. Findo o mandato, seria proclamado Sócio Honorário da Instituição, pelos “relevantes serviços prestados a esta Colectividade”. Regressaria ao leme desta Instituição por duas vezes, entre 1929 e 1931 e em 1945 e 46.

Eduardo de Almeida destacou-se como escritor, de grande mérito, sendo autor de uma obra que vai da ficção (publicou um romance e quatro volumes de novelas) aos estudos jurídicos e sociológicos. Quando assumiu a Direcção da Sociedade Martins Sarmento e da Revista de Guimarães, deu início às suas investigações históricas, publicando uma notável série de estudos dedicados à história de Guimarães.

Eduardo de Almeida, um dos últimos românticos da República, faleceu no dia 6 de Janeiro de 1958. Foi dado à terra, com simplicidade, no cemitério da Atouguia, onde repousou ao lado de dois outros grandes escritores portugueses, Carlos Malheiro Dias e Raul Brandão.

1884-1958

António Amaro das Neves

Galeria

Eduardo de Almeida em imagens

1898

1902

1934

1953

1957

Eduardo de Almeida, escritor

As três horas de Guimarães

Num texto que fazia a primeira página do número único do jornal Guimarais, editado no dia 23 de Julho de 1933, pelos grupos excursionistas 20 Arautos de D. Afonso Henriques, Infalíveis e Fouce, o escritor Eduardo de Almeida descreveu as três horas de Guimarães. Aqui fica.

Tem cada terra a sua hora. Poderá não ser a melhor para a observar: é a mais própria para a compreender. Ver só de qualquer terra o quadro da paisagem e o amontoado de pedra não é senti-la. Muitas vezes leva a ignorá-la mais profundamente. Já se escreveu com acerto — e coisa bem natural – que os estranhos nos vêem melhor. Ordinariamente, de outro modo, o que é diferente. Mas eu falo no ver com a penetração subtil, que procura a íntima estrutura.

São curiosas de romance psicológico as horas das cidades, as diversas horas de cada dia, no seu quadrante compassado e monótono, em que vem a passar a flagrantemente reveladora. Hora das almas, hora na alma da vida colectiva.

Talvez, com certeza muito imperfeitamente, eu conheço em Guimarães três horas, e tenho sempre duvidado e hesitado em qual das três haja mais carácter, para, de entre elas, definir ou escolher a nossa hora.

A Guimarães de ao abrir da manhã é o solar fidalgo de uma boa quinta minhota, com panos de soberba arquitectura, grandes traços de ruínas e sobreposições restauracionistas várias. É quando entram as leiteiras, e, para o mercado, as camponesas dos cestos da hortaliça e da fruta; quando os lavradores acordam as casas dos senhorios, para despejarem os carros do milho, das pipas de vinho, dos molhos de lenha – e tomam toda a rua e os largos como eidos. As lojas espreitam-nos e chamam por eles com o bacalhau e as chitas. É o arruído e o pitoresco da aldeia, uma aldeia maior em plena aldeia, porque se não andam dois passos sem topar uma nesga de terra folhada de milho, a latada de vides, árvores de fruta, socalcos por onde a água escorre gorgolejante, a galinha e a sua ninhada de pintainhos. A feição da antiga vila de Vimaranes, a quinta da Condessa Dona Muma, ficou-nos nitidamente gravada, com a sua tenacidade rude, o seu ar forte de saúde, a simplicidade colorida e alegre do trabalho agrícola.

A outra hora é no fim da tarde, antes do crepúsculo – que, visto pelo monte de S. Pedro até à Conceição, ou da Costa a Urgezes e Santo Amaro é apenas maravilhoso – quase ao fim da tarde, à saída das fábricas. Coleiam as operárias como um extenso rio humano, operárias da cidade e operárias vindas da aldeia, em vários braços desconfluentes. Há um silêncio maior, como se os estremeções das máquinas, agora paradas, tivessem, nas horas de trabalho, animado o fragor das ruas e praças, afinal quase despovoadas, então, de movimento, e por onde elas vão passando, em grupos, com um riso, uma flor, um olhar, talvez uma lágrima. Grande parte da cidade, que parecia desabitada, enche-se de vida. E essa hora, o sinal da Guimarães fabril, uma colmeia enorme de trabalhadores anónimos, é a Guimarães, o mais forte, independente e progressivo núcleo do trabalho industrial.

Entre estas duas horas, o comum de todas as cidades: as repartições, o comércio, os bancos, os cafés. A indústria doméstica ocupa ainda alguns dos que não têm que fazer cá fora, embora, como em toda a parte, tenda cada vez mais a desaparecer.

São as horas da vida. Mas há uma hora morta sugestivamente encantadora, hora de noite morta, ao luar, junto ao Castelo, a hora da evocação, e do passado, da História e da Lenda, dos castros citanienses e de S. Mamede, a hora do Herói e do Monge, de guerreiros e trovadores, quando a vida agrícola e industrial dorme de cansaço, e as velhas pedras se animam, as velhas pedras daquele ninho soberbo, onde se concebeu e sonhou o sonho de Portugal.

Tenho-me deixado embalar, como num cântico de saudade e esperança, na carinhosa magia desta romagem de fantasmas em noites de luar: talvez seja, para mim, a verdadeira hora de Guimarães. E, não sei porquê, as duas outras, as horas da vida, me parecem tão naturais como se foram irmãs, filhas do mesmo amor e esforço, ouvindo, à distância de séculos, o lavrar da charrua e o bater do linho.

Eduardo de Almeida, 1933

Eduardo de Almeida nas Memórias de Araduca