Camilo Castelo Branco e Guimarães
escritor romântico


Romancista e polígrafo, com Guimarães na pena
Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco nasceu em Lisboa, a 16 de março de 1825, mas foi o Norte que lhe deu cenário e voz. Órfão muito cedo, cresceu entre Trás-os-Montes e o Minho, frequentando seminários, cursos iniciados e não concluídos, redações de jornais e salões onde se misturavam fidalgos arruinados, burgueses em ascensão e clérigos de todas as castas. Foi o primeiro escritor português a viver apenas da escrita, produzindo “onze dúzias de livros” – novelas passionais, crónicas, folhetins, memórias, polémicas – que lhe valeram o título de visconde de Correia Botelho e um lugar central no cânone literário.
Guimarães entra cedo na sua obra e nunca mais sai. Em Memórias do Cárcere, o narrador confessa que, “refrigerados os ardores” da saudade, “foi a Guimarães não sei para quê” – uma dessas idas que deixam marcas na literatura. As ruas do burgo, a estalagem da Joaninha, a Citânia de Briteiros, figuras como o Conde de Margaride ou o médico Joaquim José de Meira reaparecem em romances, novelas e crónicas, compondo uma geografia vimaranense que atravessa mais de três dezenas de obras.
Com Francisco Martins Sarmento, Camilo manteve uma amizade intensa, feita de cartas, ironias e admiração mútua. Dedicou-lhe No Bom Jesus do Monte (1864) e um ensaio em Esboços de apreciações literárias (1865). Entre os dois nasce, em pleno fim de século, a jocosa polémica dos Estudos da velha história portuguesa, publicada sob pseudónimo e em tom de guerra fingida, hoje reeditada pela Casa de Sarmento. Na dedicatória de A viúva do Enforcado, Camilo espanta-se por não encontrar em Guimarães a estátua de Afonso Henriques, e promete “levantar em papel” o monumento que a cidade tarda em erguer – gesto que o aproxima, ainda mais, da memória cívica do burgo.
Retirado em São Miguel de Seide, já quase cego e perseguido pelas dívidas e pelas desgraças familiares, suicidou-se a 1 de junho de 1890. Ficou, porém, a trama de lugares e figuras que ligam Guimarães à sua obra: das pensões e ruas da cidade à Citânia de Briteiros, da amizade com Sarmento ao “berço” de Afonso Henriques, Camilo deixou na literatura um dos mais vivos retratos do Minho oitocentista.


cAMILO CASTELO BRANCO, nota biográfica
Percurso
1825 (16 de março) – Nasce em Lisboa, na Rua da Rosa, filho de Manuel Joaquim Botelho Castelo Branco e de Jacinta Rosa; é batizado na igreja dos Mártires.
1835 – Órfão de pai e mãe, é levado para Vila Real e depois para Vilarinho de Samardã, onde recebe educação irregular de padres de província.
1841 – Casa, aos 16 anos, com Joaquina Pereira de França, em Ribeira de Pena; pouco depois abandona-a e entrega-se à vida de boémia, jornalismo e estudos incompletos de Medicina e Direito.
Décadas de 1850–1860 – Afirmase como romancista romântico: publica, entre muitas outras obras, Anátema, Mistérios de Lisboa, Coração, Cabeça e Estômago e Amor de Perdição.
1862 – Em Memórias do Cárcere, descreve viagens e episódios em Guimarães e na Citânia de Briteiros, fixando literariamente o território vimaranense.
1864 – Publica No Bom Jesus do Monte, dedicado a Francisco Martins Sarmento, inaugurando uma relação de amizade e diálogo intelectual que perdurará até ao fim da vida.
1865 – Em Esboços de apreciações literárias inclui um estudo sobre Sarmento, reforçando os laços com Guimarães e a Sociedade que virá a tomar o seu nome.
1877 – Publica A viúva do Enforcado, das Novelas do Minho, onde a dedicatória a D. Afonso Henriques denuncia a ausência de monumento ao fundador da monarquia em Guimarães.
1887 – Sai em volume Estudos da velha história portuguesa, polémica epistolar simulada escrita a quatro mãos com Martins Sarmento, inicialmente publicada em jornal sob pseudónimos e em benefício de obras pias.
1885–1888 – É feito visconde de Correia Botelho por D. Luís e, já quase cego, casa finalmente com Ana Plácido no Porto.
1890 (1 de junho) – Suicida-se em São Miguel de Seide, Vila Nova de Famalicão. A sua obra – mais de uma centena de títulos – torna-o um dos escritores portugueses mais lidos do século XIX.
Camilo Castelo Branco e Guimarães
Entre o trauma e a redenção


A relação de Camilo Castelo Branco com Guimarães é sinuosa e ambivalente: um percurso vivencial e literário acidentado, sujeita aos abalos da sua vida pessoal. Não podemos dizer que exista uma Guimarães na obra de Camilo, mas sim múltiplas cidades sobrepostas, construídas e demolidas conforme a necessidade da narrativa ou o estado de espírito do autor.
Na tentativa de sintetizar a visão de Camilo sobre Guimarães, podemos arrumá-la em quatro eixos fundamentais e estruturantes da sua relação com a cidade e a sua gente:
Eixo físico: trauma e da redenção
A experiência dolorosa de 1860 (fuga e estadia na Estalagem da Joaninha) é o marco zero da verdadeira "vivência" vimaranense de Camilo. Antes disso, a cidade não era mais do que uma abstração estética e literária.
Inicialmente, sobreveio a repulsa: Guimarães é o lugar do sofrimento abjeto. Em Memórias do Cárcere, a cidade é física: é cheiro ("miasmas"), é tato ("lixo empedrado", "bichos"), é gosto repulsivo ("cozinhado de Locusta"). É uma cidade hostil, velha e suja, que rejeita o foragido.
Quatro anos depois, em Amor de Salvação, opera-se o milagre literário da sublimação. A mesma cidade e a mesma estalagem são asseadas e perfumadas pela pena do escritor. O "pântano" transforma-se em "poesia". Esta transformação revela que, para Camilo, Guimarães é uma matéria plástica: o escritor desenha a cidade conforme os seus estados de alma, a sua segurança ou insegurança interior.
Eixo Social: palco da comédia humana
Camilo usa Guimarães como um laboratório sociológico, oscilando entre a idealização amena e a caricatura agreste.
Por um lado, há espaço para a beleza idealizada. Já no seu romance de estreia, Anátema, a mulher de Guimarães (Micaela) é o padrão de beleza, a "formosura" feita carne. Esta idealização da beleza da mulher de Guimarães será recorrente na escrita camiliana.
Por outro lado, Guimarães é lugar de fealdade social, de que são exemplo os Noronhas de Guimarães, da obra Doze Casamentos Felizes, retratados como paradigmas da feiura e da estupidez.
Esta contradição não é acidental. Camilo admira a gente do povo o povo (os cuteleiros, os ourives, e outros artífices), mas despreza com aspereza a pequena aristocracia e a burguesia pretensiosa da cidade, que retrata como tacanha, bisbilhoteira, ("os de Guimarães" em Romance dum Homem Rico) e intelectualmente vazia e lerda.
Eixo histórico: berço da nação e da infâmia
Para o Camilo historiador, Guimarães é intocável na sua dignidade fundacional. É a terra de Afonso Henriques, e qualquer ficção aí situada deve respeito a essa memória (A Viúva do Enforcado). Contudo, o seu olhar crítico sobre a sociedade portuguesa leva-o a ver na cidade também as sombras da nação: é o "lamacento berço" (A Enjeitada), manchado pela vergonha dos enjeitados e pelo fanatismo miguelista e inquisitorial (A Bruxa de Monte Córdova, Eusébio Macário). Para Camilo, Guimarães resume as grandezas e as misérias de Portugal.
Eixo afectivo: santuário da amizade
Finalmente, Guimarães é a cidade de Francisco Martins Sarmento. Este é o elemento que, em última análise, redime a cidade aos olhos do escritor. A presença de Sarmento transforma a geografia: as Taipas, Briteiros e a própria cidade deixam de ser apenas cenários para se tornarem lugares de comunhão espiritual. Graças a Sarmento, Guimarães torna-se no lugar onde o inquieto Camilo encontra o "irmão" que não encontrou em nenhum outro. A visão final de Camilo sobre Guimarães é, portanto, uma visão de gratidão: a cidade que lhe deu o pior leito, na estalagem da Joaninha, onde os “leitos guardam nas furnas, roídas pelo dente dos séculos, muito bicho, coevo do rei Bamba, que lhe cravou a oliveira à porta”, deu-lhe também o melhor amigo, “como usam raramente ser os irmãos, em Francisco Martins”.
Em suma, Camilo representa Guimarães como um velho solar: imponente e histórico, habitado por gente de todo o tipo (das mais belas às mais tolas), por vezes decrépito, sujo, e desconfortável, mas onde, numa das salas, ardia sempre a lareira quente e acolhedora da amizade e da inteligência.
Olhar(es) de Camilo sobre Guimarães
Camilo Castelo Branco e Francisco Martins Sarmento
You didn’t come this far to stop
A amizade entre Camilo Castelo Branco e Francisco Martins Sarmento é um dos capítulos mais tocantes e intelectualmente ricos da história literária portuguesa oitocentista. Não foi uma ligação nascida da convivência fácil ou da paridade de temperamentos, mas sim uma fraternidade forjada na angústia, no respeito mútuo e numa profunda admiração que resistiu a três décadas de turbulência.
O primeiro contacto, ironicamente, foi de mestre severo para discípulo. Quando Sarmento publica as suas Poesias em 1855, Camilo, na altura já um nome firmado, dedica-lhe uma apreciação nos seus Esboços de Apreciações Literárias. A crítica não foi branda. Camilo, o romancista do coração, aconselhou o jovem poeta a "pôr de parte o coração" e a "pedir à cabeça os seus modelos", vendo naqueles versos um livro "cortado da angústia". Mal sabiam ambos que seria precisamente o "coração" e as suas tragédias a uni-los indissoluvelmente anos mais tarde.
O verdadeiro encontro — aquele que selaria a amizade — dá-se num cenário digno de novela camiliana. Em 1860, acossado pela justiça devido aos "amores de perdição" com Ana Plácido, Camilo foge para o Norte à procura de refúgio. Em Guimarães, onde não encontrava "onde encostar a cabeça febril", lembrou-se do poeta de Briteiros. A frase que imortalizou este momento nas Memórias do Cárcere ecoa ainda hoje como a definição perfeita do laço que os uniu: "Procurei o conhecido, e achei um amigo, como usam raramente ser os irmãos".
Foi em Briteiros, na Quinta da Ponte, e nas Taipas, que Sarmento acolheu o foragido. Ali, entre passeios de barco no Ave e conversas silenciosas, o futuro arqueólogo tornou-se o "voluntário quinhoeiro das tristezas" de Camilo. Enquanto Camilo via naquelas paisagens o cenário das suas Memórias, Sarmento começava a olhar para o "serro" da Citânia, iniciando o caminho que o levaria a ser o célebre "escavador de montes".
A admiração de Camilo por Sarmento transparece em várias obras. Em No Bom Jesus do Monte (1864), a dedicatória é um testemunho dessa estima, onde Camilo, com a sua habitual auto-ironia, fala da sua própria "cavidade craniana desmiolada" pelo amor, contrastando com a solidez intelectual do amigo. Mas foi na correspondência que a intimidade se revelou por inteiro. As cartas trocadas são um sismógrafo da vida de ambos: Camilo desabafava sobre a falta de dinheiro, vendendo livros ao amigo generoso, e sobre a aproximação da "velhice extemporânea" e da cegueira; Sarmento, o pilar inabalável, respondia com apoio constante, mesmo quando recusava honrarias oficiais como a Comenda de Santiago — um episódio que Camilo comentou com mordacidade nos seus Ecos Humorísticos, defendendo a honra do amigo contra a tacanhez política da época.
Talvez o momento mais singular desta união intelectual tenha sido a colaboração jocosa nos Estudos da Velha História Portuguesa, publicados no Óbolo às Crianças (1887). Sob os pseudónimos de Frei Bernardo de Brito Júnior (Camilo) e F. Fagundes (Sarmento), os dois encenaram uma polémica deliciosa sobre as origens dos povos peninsulares, rindo-se da erudição académica enquanto a vida de Camilo se afundava na sombra.
O fim da correspondência é doloroso. Em 1887, um Camilo "quase cego e paraplégico" dita a Ana Plácido as últimas linhas para o seu "velho e grato amigo", confessando o espectro do suicídio que o perseguia desde a juventude. "Já não lerei o seu livro", escreveu, despedindo-se daquele que, trinta anos antes, o acolhera sem perguntas.
A amizade entre o romancista atormentado e o sábio arqueólogo permanece como um testemunho de lealdade. Sarmento não foi apenas o mecenas ou o refúgio; foi, para Camilo, a prova de que, no meio da "podridão surda" do mundo, existia ainda a nobreza de carácter. Como bem escreveu, encontrou nele o irmão que o sangue não lhe dera, mas que o destino lhe ofereceu.
Camilo e Sarmento:
mais do que amigos


Cartografia de Guimarães nas obras de Camilo
E uma obra de Ana Plácido em Guimarães.
Bibliografia camiliana com referências a Guimarães
Com fichas de leitura e acesso online às obras.










