Afonso Henriques
Infante de Guimarães e primeiro rei de Portugal


O rei fundador
A biografia de Afonso Henriques, o primeiro rei dos portugueses, vive entre a sombra e a luz. Filho do conde D. Henrique de Borgonha e de D. Teresa, infanta de Leão, terá nascido por volta de 1109, sendo incertas tanto a data como o lugar – entre hipóteses eruditas que apontam Viseu ou Coimbra e uma tradição tenaz que o quer ver nascido em Guimarães. Cresceu num condado em tensão com Leão e Castela, entre a corte itinerante e o castelo de Guimarães, ao cuidado de Egas Moniz e da nobreza portucalense.
Em 1128, à frente de um partido de fidalgos descontentes com o governo de D. Teresa e dos senhores galegos, vence a batalha de S. Mamede, nos arredores de Guimarães, e assume o governo do Condado Portucalense. Seguem-se anos de conflito com Leão e, sobretudo, de avanço para sul, contra as cidades muçulmanas da Beira e do vale do Tejo. A tradição fixou em Ourique, em 1139, a aclamação régia; a negociação com Afonso VII e o Tratado de Zamora, em 1143, consolidam o reconhecimento do novo reino; a bula Manifestis Probatum, de 1179, dá forma canónica à independência de Portugal e ao título régio de Afonso.
Da figura do rei fundador, a historiografia moderna separou cuidadosamente as lendas – o milagre de Ourique, as Cortes de Lamego, o testamento político de D. Henrique, o bispo negro, o milagre das pernas miraculadas ou a prisão da mãe – do que os documentos permitem afirmar. Fica a imagem de um príncipe duro, guerreiro infatigável, que fez da espada e da diplomacia o seu programa, alargando fronteiras e consolidando poderes. Entre a incerteza das datas e a solidez das conquistas, o legado de Afonso Henriques é menos a biografia que quase não conhecemos do que o país que ajudou a desenhar a partir de Guimarães e de Coimbra.


Afonso henriques, nota biográfica
Percurso
c. 1109 – Nascimento de Afonso Henriques; data e local incertos, com hipóteses que incluem Guimarães, Viseu e Coimbra.
1112 (12 de maio) – Morte do conde D. Henrique em Astorga; D. Teresa assume o governo do Condado Portucalense.
c. 1120 – Infante é educado sob a tutela de Egas Moniz e da alta nobreza portucalense.
1128 (24 de junho) – Batalha de S. Mamede, junto a Guimarães; Afonso derrota o partido de D. Teresa e dos Trava e passa a governar o condado.
c. 1131 – Estabelece a corte em Coimbra e patrocina a fundação do mosteiro de Santa Cruz, futuro panteão régio.
1139 (25 de julho, segundo a tradição) – Batalha de Ourique; Afonso vence forças muçulmanas e é aclamado rei pelos seus pares, episódio envolto em forte carga lendária.
1143 (5 de outubro) – Tratado de Zamora entre Afonso Henriques e Afonso VII de Leão; o primeiro intitula-se Rex Portugallensis, consolidando politicamente o novo reino.
1147 – Conquista de Santarém (março) e de Lisboa (outubro), marcos decisivos da expansão para sul.
1169 – Campanha de Badajoz; Afonso cai do cavalo e fica gravemente ferido, limitando a sua actividade militar directa.
1179 (23 de maio) – Bula Manifestis Probatum, do papa Alexandre III, reconhece Afonso como rei de Portugal e consagra a independência do reino.
1185 (6 de dezembro) – Morte de Afonso Henriques em Coimbra; é sepultado em Santa Cruz, onde o túmulo virá a ser reformado em época manuelina.
Para além da lenda
O rosto de Afonso Henriques
Em 2009, quando em Guimarães se celebrou os 900 nos do nascimento de Afonso Henriques, promovemos uma exposição, na Sociedade Martins Sarmento, com as diferentes representações conhecidas de um retrato desconhecido: Os rostos de Afonso Henriques. Para o catálogo escrevi um texto em que tratei os diferentes retratos afonsinos que foram sendo feitos ao longo dos séculos, uns esculpidos, outros pintados, outros gravados em madeira ou em cobre, outros litografados e, também, os retratos “falados”, que se encontram nas fontes históricas e na literatura. Aos olhos saltava uma evidência: muitos rostos deram a Afonso Henriques, até que Soares dos Reis fixou o definitivo, no monumento encomendado e pago pelos vimaranenses, inaugurado em 1884, e a quem o povo cognominou de rei preto. É nessa imagem que visualizamos Afonso Henriques, apesar de a estátua ter diversos elementos pouco plausíveis e anacrónicos. Ao contrário de D. Dinis, cujo rosto conhecemos agora com precisão científica, para D. Afonso Henriques ainda estamos dependentes de uma mistura de crónicas medievais e deduções genéticas.
O que hoje se sabe, resulta do cruzamento das descrições dos cronistas, da breve observação, com recurso a uma microcâmara introduzida no túmulo em 2006, pela equipa da antropóloga Eugénia Cunha, nos trabalhos preparatórios para o estudo dos restos mortais do rei fundador, que não se concretizaria, e dos novos dados genéticos da sua linhagem D. Dinis, resultados de um projecto de investigação internacional, com a participação da mesma investigadora. Cruzando estas informações, foi possível chegar ao estado da arte do conhecimento sobre as feições e o corpo de Afonso Henriques, e confrontando-o com a imagem que é transmitida pelas crónicas e pela tradição.
Não sendo o gigante que aparece nas descrições (10 palmos, ou seja, à volta de 2,20 metros…), parece confirmar-se que era um homem invulgarmente alto, passa um tempo em que a média de altura da população pouco ultrapassaria, se ultrapassasse, 1,60 metros. Afonso Henriques andaria à volta de1,80 metros, o que faria dele, aos olhos dos seus contemporâneos, um gigante, ou quase. A sua compleição seria robusta, com ossadas largas.
A recente reconstituição de D. Dinis (trineto de Afonso Henriques) trouxe dados genéticos fundamentais sobre a linhagem da Casa de Borgonha, que podem ser extrapolados para o seu antepassado. O estudo de D. Dinis revelou que ele tinha cabelo castanho-claro/arruivado e pele clara. Sendo Afonso Henriques filho de um nobre franco (Henrique de Borgonha), é altamente provável que partilhasse esta tez mais clara e o cabelo acobreado ou castanho-avermelhado, distinto das populações moçárabes mais morenas do sul da península.
Adicionalmente, a genética de D. Dinis apontou para olhos claros (provavelmente azuis ou verdes). É plausível que Afonso Henriques tivesse também olhos claros, uma característica frequente na nobreza do norte da Europa da altura.
A Chronica Gothorum (séc. XII) e relatos dos monges de Santa Cruz, que terão convivido com o primeiro rei, dão-nos pistas contraditórias, mas reveladoras. Quanto ao olhar, é descrito como possuidor de "olhos que ardiam" ou de um olhar "terrível", quando tomado pela ira. Isto sugere olhos profundos ou sobrolhos proeminentes (arcadas supraorbitais fortes.
A recriação científica das feições de D. Dinis revela um nariz proeminente e um queixo robusto, que são características hereditárias dominantes. É provável que Afonso Henriques tivesse um nariz aquilino ou forte e uma mandíbula marcada.
Por último, a representação icónica da barba longa é historicamente correta. No século XII, a barba era um símbolo de virilidade e autoridade guerreira, ao contrário da moda cara limpa que surgiria em séculos posteriores.
Do cruzamento dos dados conhecidos, resultantes da reconstituição de D. Dinis e da breve observação do túmulo de Coimbra, tem-se como plausível que Afonso Henriques fosse alto a ponto de se destacar claramente numa multidão do seu tempo; teria pele clara, presumivelmente queimada pelo sol das campanhas, cabelo castanho-avermelhado ou louro-escuro (ficando branco na velhice) e, possivelmente, olhos claros. O rosto seria alongado, (como D. Dinis), o nariz forte e a barba espessa. Atendendo à descrição que dele fizeram os monges de Coimbra, parece natural que seja representado com sobrolhos carregados. Em suma, um homem atlético, seco e musculado, de perfil mais comum de regiões europeias mais a norte e com marcas de envelhecimento precoce devido a uma vida de guerra constante.
A imagem que agora apresentamos não é um exercício de fantasia aleatória. É uma reconstituição histórica visual, gerada por inteligência artificial, mas guiada por um guião tão rigoroso quanto possível baseado em dados arqueológicos, genéticos e documentais.


D. Afonso Henriques. Escultura em bronze de Soares dos Reis (pormenor), 1887. Foto de Eduardo Brito para a exposição Os Rostos de Afonso Henriques, Sociedade Martins Sarmento, Guimarães, 2007.














